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A Campana da Walküre
A perseguição era discreta. Tão discreta que em nenhum momento seu perseguido se deu conta do carro sempre atrás, embora a uma distância segura. Nas últimas três semanas a jovem se empenhou numa campana constante e obcecada, sem revezamento. Até parecia algo muito pessoal. Mas não era. O olhar da jovem loira era frio e meticuloso, sempre atento ao carro que estava seguindo desde a Rua Oriente, no Brás.
Já conhecia o trajeto de Augusto, que sempre se encontrava com uma garota da Penha de nome Suzanna Carvalho Silva, estudante de psicologia, com quem estava saindo já há pelo menos uns cinco meses. E tudo dava a entender que os dois se davam muito bem, o que só contribuía para fragmentar ainda mais o namoro de seis anos do rapaz com uma empresária do bairro da Liberdade, que já tinha sido “contatada” por outro “caçador”.
Na verdade, o rapaz e sua nova namorada estavam prestes a também ser “contatados” e “recrutados” para compor o quadro de “voluntários” dos lotes 03 e 06, nos diretórios B e C, subdiretórios B2 e C1. Ele seria a Unidade 8, do Lote 03, do Subdiretório B2, Diretório B. Suzanna seria a unidade 09, do lote 06, no subdiretório C1, diretório C.
A namorada do bairro da Liberdade já tinha sido “recrutada”, e estava ocupando sua posição no Diretório A, Subdiretório A4, Lote 06, unidade 10.
Naquela primeira fase a organização não dispensaria pessoas com alguma espécie de vínculo familiar ou de relacionamento, mas isto não abria nenhum precedente pro futuro. Este era um caso especial por se tratar da primeira fase, ou fase inaugural do programa. Posteriormente qualquer jovem, sendo pobre ou rico, universitário ou não, estaria apto pra se tornar “voluntário”. O único requisito era que o mesmo fosse saudável, solteiro e sem filhos. A exceção, somente uma pessoa por família.
O celular tocou e ela atendeu com um “salve”. O olhar atento ao carro de Augusto não perdia o foco. Do outro lado da linha, uma voz feminina.
– Walküre8, como estão as coisas?
– Walküre8 em fase de conclusão.
– Ok. Tenha cuidado e boa sorte, completou a pessoa do outro lado da linha, desligando o telefone em seguida.
Walküre8 acelerou e habilidosamente ultrapassou o carro de Augusto, que logo foi desaparecendo do retrovisor. Olhou o relógio.
“Cinderela está no palácio”, sussurrou, aumentando a velocidade.
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Lembranças de Terror
Antes de chegar à casa de Suzanna, Augusto resolveu levar uma pizza pra comer com a namorada. Parou numa pizzaria e enquanto aguardava seu pedido, ouviu alguns jovens brincando numa mesa de canto. Um dos jovens perguntou aos demais:
– Galera, qual a diferença entre um porco gordo e um gordo porco?
Os companheiros do rapaz, três moças e um garoto de cabelos espetados, pareciam surpresos com a brincadeira. Aquela pergunta indiscreta e um tanto quanto preconceituosa gerou um certo desconforto em todos, já que o garoto falava alto.
– Ah, vamos lá, gente! É só uma piadinha inocente. Ninguém sabe a resposta?
– Eu não sei – falou sem graça a moça loira sentada à direita do brincalhão. – Alguém sabe?
– E aí, ninguém? – insistiu o rapaz.
Os demais jovens, um a um, deram de ombros, constrangidos e visivelmente incomodados com a cena indiscreta e de péssimo gosto do rapaz.
– Ambos são gordos e ambos são porcos, gente! Ah, qualé!– completou o brincalhão sem noção, caindo sozinho na gargalhada, enquanto os amigos, ligeiramente embaraçados, olhavam pros lados, disfarçando a vergonha e doidos pra encontrar um buraco e se esconder.
Brincadeira sem graça e inoportuna, já que várias pessoas que estavam na pizzaria se voltaram pra observar a cena patética. Claro que vários gordos faziam parte da plateia. Irritados com a palhaçada, alguns se levantaram e saíram furiosos.
Consequências graves podem provir de ações e palavras. Geralmente as palavras geram as ações, as ações geram as consequências, consequências que podem ser graves ou não. Mas elas sempre existem.
“Mauricinho babaca”, pensou Augusto, de alguma forma se identificando com o adolescente. Augusto sabia bem o quanto um jovem tolo e inconsequente pode ser danoso em suas ações.
Dez anos antes, durante as férias de família numa cidade do interior de São Paulo, ele viu e viveu as emoções de uma atitude inconsequente.
Dar um rolê de bike sozinho pelas imediações da Rodovia SP-340, a Rodovia Dr. Adhemar Pereira de Barros, parecia ser um programa interessante naquele anoitecer de 23 de dezembro de 2000. A época de natal, com todas as suas chatices e hipocrisias, é perfeita para qualquer atividade ilícita. Numa data em que pessoas comem como porcos ou são praticamente forçadas a presentear todo mundo, além de ter que fingir amar quem odeia, e até fingir uma falsa felicidade só para dar a impressão de que não é um desgraçado, nada mais adequado que a chegada repentina dum armagedom pra expor todo o fingimento e cinismo.
Aos treze anos, Augusto já achava que sabia de tudo. Sentia-se bem quando estava sozinho. Mas naquela tarde, estava inquieto enquanto pedalava contra os faróis do número incontável de carros que passavam a milhão, apressados para chegar aos seus destinos. Fim de semana prolongado, trânsito intenso, tudo que Augusto queria pro seu plano macabro.
Assim que chegou ao viaduto, estacionou a bicicleta num canto escuro e sentou-se no gramado. Tentou contar os carros, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10...
Impossível, era um milhão de carros por segundo. Cada caminhão ou ônibus que passava, só faltava arrastá-lo num vendaval. Divertido pra caramba. Mas não era o bastante pra aplacar a vontade sombria que o inundava de adrenalina.
Tentou dissuadir os próprios desejos dissolutos, mas foi dissuadido pelos mesmos a desistir de tentar dissuadi-los. Convenceu-se de que se não fizesse aquilo, lamentaria para sempre por não tê-lo feito. Só se tem treze anos uma vez, e a imunidade acaba tão depressa. Dali a cinco anos, já não seria mais um pré-adolescente, e estaria plenamente apto a responder por todas as suas ações. Já aos treze anos, tudo era maravilhoso, poder-se-ia fazer o que quisesse, e estaria perdoado. Mesmo que explodisse o mundo.
Augusto começou a vasculhar as imediações com sua lanterna. Conseguiu encontrar pelo menos umas vinte pedras caprichadas que quase encheram a bolsa que carregava às costas. Escolheu uma das maiores, pesada e pontiagudona, dava gosto de ver. Era só uma questão de aguardar até que surgisse o alvo perfeito. E ele surgiu, imponente e enorme ao longe. Augusto sentiu um frio lhe percorrer toda a espinha. Foi invadido por uma sensação indescritível de poder e ansiedade. Era um caminhão com uma carga enorme. Até parecia que não conseguiria passar debaixo do viaduto.
Augusto respirou fundo e se preparou. Era um garoto forte, fruto das aulas de natação e dos treinos intensos na escola de karatê. Começou a girar o braço como um doido, concentrando o máximo de força possível. E no momento certo, liberou a pedra, que acertou o vidro do caminhão bem no lado do motorista. O caminhão titubeou em ziguezague, se desviando pra esquerda, e inacreditavelmente, sob um som horripilante de ferro se retorcendo, começou a arrastar vários carros pequenos que voavam rumo aos céus como se fossem brinquedos, se espatifando em seguida fora da pista em giros estonteantes. Outros carros que vinham atrás freavam abruptamente e capotavam se chocando contra as colunas de sustentação do viaduto ou contra o próprio caminhão já totalmente fora de controle e prestes a virar, espalhando toda sua carga de sacos de cimento e cal que ajudariam a aumentar a mortandade entre as dezenas de vítimas sufocadas pela poeira cega e irrespirável que cobriria os céus já pretos pela fumaça das explosões de vários carros. Num instante, tudo que se via era um horror de fogo, explosões e gritos alucinantes de dor e desespero, enquanto Augusto, incrédulo com a calamidade que causara, parecia petrificado, boca aberta e olhos esbugalhados diante de tanto horror.
E assim, o menino de comportamento egocêntrico e arrogante foi o principal responsável por uma tragédia que assombrou o país inteiro e foi notícia nos principais meio de comunicação do mundo. Quinze vidas se perderam juntamente com seus sonhos e desejos, e várias outras foram destruídas para sempre, tudo por causa de um garoto irresponsável que só queria se divertir jogando pedras em carros numa rodovia muito movimentada.
Ninguém jamais soube da verdade, e Augusto passou a sua adolescência em meio a pesadelos, crises de consciência, acompanhamento psicológico e remédios controlados. Mas ele nunca contou a verdade negra nem mesmo para o padre Cañedo, amigo da família. Toda sua revolta e amargura desde então, interpretadas erroneamente por seu pai como “caprichos de um rebelde sem causa”, tinham por base exatamente aquela tragédia, cujos fantasmas sempre o perseguiriam implacavelmente sedentos de vingança, e ele, buscando uma forma de alcançar o perdão impossível.
– Seu pedido, senhor.
A voz da moça parecia vir de muito longe, enquanto ele ia gradualmente voltando à realidade. Ficou meio sem jeito diante do olhar curioso da atendente.
– O senhor está se sentindo bem?
Ele respondeu que sim, enquanto retirava rapidamente o dinheiro da carteira. Estava tão envergonhado que só queria sair dali o mais rápido possível. Por quanto tempo permaneceu lá no balcão, absorto como um zumbi? De vez em quando isso acontecia, mas nunca acontecera em público. Até então.
Entregou o dinheiro à moça e saiu rapidamente com a pizza e a coca-cola, sem sequer ouvir a garota o chamando para entregar-lhe o troco. Entrou no carro e foi embora.
9/18
Nas Garras da Walküre
Ao chegar à casa de Suzanna, notou um carro estacionado logo atrás do seu. Provavelmente de alguma amiga da faculdade ou do trabalho, ou mesmo de algum parente que veio visitá-la.
Bateu na porta. Uma jovem loira simpática e muito bonita abriu. Ele a cumprimentou sorridente e se apresentou como namorado de Suzanna. A moça disse que era prima, que acabara de chegar de Barretos para visitar Suzanna, e mandou-o entrar. Ele agradeceu e entrou, olhando pros lados, ainda surpreso com a inesperada presença de uma prima de Suzanna.
– Onde está ela?
– Ah! Está tomando banho, acho que está se preparando pra você.
Augusto colocou a pizza e o refrigerante ali mesmo na sala, numa mesinha de centro. Dava pra ouvir o som do chuveiro.
– E então – perguntou ele, tentando ser simpático – , Chegou hoje?
– Na verdade, acabei de chegar.
– Legal.
– Ah! Eu sou a Walküre!
– “Wal” o quê? Brincou ele diante da pronúncia que parecia dobrar a língua da moça.
– Walküre, é um nome alemão. Mas não liga, pode me chamar de Val, acho bem mais bacana, além de ser menos constrangedor. Imagine, um nome alemão num país quase que totalmente mestiço como o Brasil.
– Eu achei um nome bem interessante, diferente. Quer dizer, não o nome, mas a pronúncia, entende?
– Sei lá, acho que esse negócio de “w” com “k” e ainda por cima um trema em cima do “u” é meio que criminoso, porque não tem nada a vez com a gente. Somos brasileiros, né? – ela abriu os braços num gesto aberto. – Esse papo de nome estrangeiro é um saco.
Ele sorriu diante da simpatia e inocente graciosidade de Val, a brasileira mais alemoa que ele já vira em toda sua vida. Embora Suzanna fosse loira, não deixava de ter traços brasileiros. Já sua prima Val, além de ter belos olhos azuis, era de uma ruivez que mais parecia uma genuína alemã. Mas sua simpatia estava além de sua aparência.
– Eu sou o Augusto, muito prazer.
– Igualmente. Ah, eu estava louca pra conhecer o namoradinho de minha priminha. Você é exatamente como ela me disse. Quer dizer, mais bonito assim, pessoalmente, né?
– É mesmo? Ela falou tanto assim de mim pra você?
– Oh! Mas acho que eu é que falei demais agora, né?
– Não, não, está tudo bem. É que ela não é de falar muito de sua família.
– Quer dizer que ela nunca falou de mim pra você?
– A gente não se conhece há tanto tempo assim, talvez ela estivesse esperando o tempo certo.
– Sei.
Por um momento ficaram em silêncio, sem saber o que dizer. Foi ela quem quebrou o gelo, toda sorridente e espontânea.
– Uau! Hum! Essa pizza deve estar deliciosa. E acompanhada de Coca-cola ainda, matou a pau. Eu estou morrendo de fome. Que tal uma bebida enquanto esperamos que a princesa nos dê a honra de sua presença?
– Boa ideia, eu aceito. Mas deixa que eu sirvo.
Os olhos de Walküre quase soltaram faíscas.
– Não, não! Eu faço questão de servir meu novo priminho!
Ele deu de ombros com um sorriso, já se sentando no sofá.
– Então está bem. Se faz questão, não vamos brigar, não é mesmo?
Walküre foi até o barzinho e pegou duas taças. Colocou uma dose generosa de uísque. Em seguida, disfarçadamente retirou um frasquinho do bolso da blusa e despejou numa das taças o líquido insípido, inodoro e inócuo, porém de um poder alucinógeno arrebatador. Com a mão direita, pegou a taça que continha a droga, com a esquerda a outra. Entregou a taça direita a Augusto e propôs um brinde.
– Salve! Ao meu mais novo priminho!
– Salve César, os que vão morrer te saúdam!– brincou ele, já se sentindo bem à vontade com a prima de Suzanna.
– Hum! Além de bonito, culto! Muito interessante. Adoro esta frase em seu original latim, “ave Caesar, morituri te salutant”. Mas a tradução é belíssima, embora a pronúncia original seja mais... original, né?
– Faz sentido, riu ele.
Beberam ao mesmo tempo, depois sentaram no sofá e ficaram em silêncio, enquanto o som do chuveiro continuava a ser ouvido. Estranhamente, nenhum som de espuma ou movimentos, só a água caindo continuamente.
– Escuta, tem algo estranho, você não acha?
– Por quê?
– Não há movimentos no banheiro, só água do chuveiro caindo. Espera aí, vou ver se está tudo bem com Suzanna.
A moça não teve qualquer reação contrária, apenas permaneceu sentada, as belas pernas cruzadas, olhando ele caminhar na direção do banheiro. Colocou a taça na mesinha de centro e abriu a embalagem da pizza. Pegou uma fatia e fechou os olhos, saboreando. Augusto parecia ter trazido a pizza para ela. Adorava a tradicionalíssima mussarela e calabresa.
Augusto bateu na porta do banheiro e chamou por Suzanna, mas ela não respondeu. Ele achou que ela estivesse brincando e se recostou na porta, aguardando que ela abrisse. Só o silêncio. Ele olhou para Walküre, que continuava sentada no sofá, indiferente, e subitamente sentiu uma forte tontura, algo tão imprevisível e intenso que o fez desequilibra-se e quase ir ao chão num baque inesperado. Recobrando-se do impacto, esfregou os olhos, antes de abrir a porta do banheiro e dar de cara com Suzanna estendida no chão e a água do chuveiro caindo sobre ela.
Entrou rapidamente e pegou a namorada nos braços, completamente nua.
– Val, chame o 192, rápido!
Mas a garota não parecia estar muito preocupada com a situação, quando chegou à entrada do banheiro e recostou-se com um celular à mão.
– Liga logo pra emergência, droga!
– Pois não, respondeu ela calmamente, enquanto discava alguns números. – Salve! Missão cumprida, mande imediatamente o pessoal.
– Ok, Walküre 50. Parabéns – respondeu a pessoa que atendeu.– Vá curtir o fim de semana, você merece.
Augusto estava perdendo não somente as forças, mas todo o poder de concentração.
– O que você fez com a gente, garota...
Antes mesmo que ele terminasse a frase, foi dominado por uma vertigem tão intensa que o fez flutuar no vazio, como se repentinamente o chão tivesse sido retirado de debaixo de seus pés. Não conseguia mais manter a serenidade ou o equilíbrio, tudo estava se desvanecendo, como se o mundo estivesse deixando de existir. Walküre de repente ganhava asas como uma mulher-morcego, batendo as asas bem na sua frente, brilhando como uma estrela, enquanto as paredes da casa tombavam pros lados e desapareciam, ficando só o vazio negro e aterrador, onde automóveis e caminhões flutuavam pegando fogo em meio a corpos inertes e sem vida. Suzanna começou a afastar-se dele, sendo engolida pela escuridão. Tentou segurá-la, mas uma força maior que ele o paralisava completamente e o devorava sugando-lhe as forças. E então foi sendo invadido por uma paz muito serena, ao mesmo tempo em que ia apagando, sumindo, sumindo, sumindo... Até que num impulso, uma convulsão o sacudiu espasmodicamente, e uma dor tênue o tragou num universo de trevas.