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BRASIL: DO CAOS AO CAOS PARTES 16, 17, 18, 19, 20
BRASIL: DO CAOS AO CAOS PARTES 16, 17, 18, 19, 20

NOTA AO LEITOR: PARA SUA TOTAL COMODIDADE, ESTE LIVRO PODE SER LIDO NA ÍNTEGRA POR VOZ NEURAL SINTÉTICA, BASTA VOCÊ CLICAR NO BOTÃO LOCALIZADO AO FINAL DESTA PÁGINA!

 

Décima Sexta Parte
O Caos que Conduziu ao Caos

E pensar que o estopim de toda aquela carnificina bélica havia ocorrido num hospital público da Zona Leste de São Paulo – apenas um seis meses antes –, onde ao anoitecer de uma sexta-feira chegara uma senhorinha a passar mal.


Assim como muitos outros a aguardar pacientemente por um simples atendimento, aquela senhora ficara sentadinha a sofrer, gemendo de dor, resignada como se não tivesse direito a atenção ou atendimento. Conformada como quem aguarda por um favor e não pode cobrar ou reclamar de nada. E ninguém aparecia para prestar-lhe socorro. Quando enfim apareceu alguém, a velhinha ergueu a mãozinha trêmula, enquanto mantinha a outra mão sobre o abdômen dolorido. – A senhora se acha melhor que os outros, vovó? Olhe só o tamanho das filas! Então comporte-se e aguarde sua vez, ora bolas! Era só o que me faltava! A pobrezinha primeiro abaixou a cabeça, em seguida a mãozinha, lentamente e envergonhada, como se fosse a pessoa mais egoísta do mundo. Recolheu-se em seu sofrimento atroz, enquanto o médico gorducho se afastava com a pompa de quem se sentia o dono do mundo.


A situação chegou a um ponto em que as próprias pessoas que aguardavam decidiram intervir a fim de que viesse alguém para atender aquela pobre senhora. Mas não aparecia ninguém. E quando enfim a velhinha subitamente abaixou a cabeça e tombou para a frente, ficando imóvel no lugar onde estava sentada, chegou um despreocupado médico só para constatar o que todos já sabiam: a coitadinha estava mortinha da silva.


O povo que lotava o hospital, enfurecido, começou a quebrar tudo. Os guardas tentaram conter a multidão e foram massacrados por porradas e pauladas. Leitos foram invadidos e médicos arrastados pelos corredores, sob socos e pontapés. Alguém mais exaltado ateou fogo nas papeladas da recepção, e de repente teve início um incêndio que em questão de minutos tornar-se-ia incontrolável. Logo o fogo tomou conta do prédio inteiro.


Gritos de pacientes desesperados e gente se evadindo por todos os lados em meio ao fumaceiro e às chamas intensas que se alastravam dramaticamente, fizeram daquele lugar um verdadeiro inferno. Um médico gorducho (exatamente o que tratara a velhinha com desprezo) saiu desorientado, o jaleco em chamas e a pele praticamente se desprendendo do corpo. Caiu de bruços, os braços abertos e a boca escancarada.


A coisa ficou tão feia que os bombeiros simplesmente não sabiam por onde começar. Médicos, enfermeiros e pacientes saíam correndo com os corpos em chamas, sem que ninguém pudesse fazer absolutamente nada, tamanha a quantidade de gente que precisava de ajuda imediata. Os gritos de horror se expandiam pelos ares de São Miguel Paulista.


A área central do bairro virou um verdadeiro campo de batalha. Lojas e bancos eram invadidos e saqueados, a estação de trem foi seriamente danificada, o trem foi impedido de prosseguir rumo a Calmom Viana e apedrejado, sendo incendiado em seguida. A partir de São Miguel, todas as estações foram destruídas em questão de horas, na medida em que as informações iam chegando pelas redes sociais e as pessoas se sentiam não apenas encorajadas, mas motivadas para destruir tudo.


Em São Miguel Paulista, logo em seguida à destruição do hospital, tudo virou um pesadelo de chamas que só se propagavam. Ao mesmo tempo, não muito distante dali, no bairro vizinho de Itaim Paulista, quem estava num hospital com nome de santa, de repente se viu envolvido até sem querer na vandalização daquela unidade, que logo também estava em chamas, pondo à prova o poder salvador da santa, que não impediu o terror que sobreveio em seguida.


Era como se o próprio Lúcifer estivesse presente com suas legiões, provocando o caos num lugar após outro. Monumentos eram destruídos, patrimônio público detonado, gente ferida, viaturas sendo atacadas num lugar após outro, ônibus sendo incendiados, delegacias escancaradas e presos sendo libertados para ajudar na irracionalidade. Era difícil descrever os eventos, pois enquanto os helicópteros das emissoras de televisão tentavam mostrar os fatos num lugar, a coisa já explodia em outro, não dando tempo nem de atualizar uma informação, haja vista que os eventos se sucediam de maneira muito rápida.


As imagens falavam mais alto que as palavras, de modo que as câmeras dos helicópteros mostravam ao vivo e em cores estonteantes a correria do povo descontrolado em meio às explosões num lugar após o outro, numa repentina, impressionante e inimaginável calamidade urbana. Apresentadores de televisão, estupefatos, tentavam explicar os últimos acontecimentos, mas a intensidade do drama só deixava tudo muito mais confuso e inexplicável.


O país assistia em choque o desenrolar dos acontecimentos que se alastravam como uma praga. A polícia, completamente desnorteada, não sabia por onde começar, pois os tumultos e a desordem já haviam atingido um patamar assustador. A ordem de conter os ânimos a qualquer preço parecia não fazer sentido àquelas alturas. O não uso de armas letais, de repente, também não fazia sentido, tamanha a súbita loucura que acometia a todos como uma peste avassaladora, levando as turbas a extremos alucinantes.


Por fim, após tentar acalmar as animosidades e só levar pauladas e muitas pedradas, um oficial da PM – um homem até “razoável” –, acabou mesmo foi perdendo as estribeiras. O vigoroso e enérgico revide por parte de seus três policiais foi inevitável, “afinal policiais não tem sangue de barata e nem são sacos de pancadas de vândalos e vagabundos”, comentaria mais tarde o secretário de segurança pública.


Assim, começaram a descer o cacete nas turbas enfurecidas que só aumentavam em números. E quanto mais a polícia descia o pau, imaginando que assim controlaria os tumultos, mais e mais o povo ficava fora de si. E como sempre existe um imbecil de plantão para piorar o que já não está bom, um policial com cara de folgado e se sentindo o cara, disparou sua arma contra um homem, estourando seus miolos. Aí o bicho pegou de verdade. De um momento para o outro a polícia se encontrou num beco sem saída, encurralada por todos os lados sob os gritos ensandecidos de “linchamento! Linchamento!”. Muitos jovens estavam mesmo era a fim de filmar o confronto para divulgar na internet. Logo estava tudo ao vivo e em cores no YouTube, onde os internautas podiam acompanhar toda a insanidade, que estava bombando na internet. As redes sociais fervilhavam de informações sempre atualizadas.


Um só vídeo postado via celular, em menos de dez minutos atingiu a marca de um milhões de visualizações. De repente, o mundo inteiro estava de olho no que acontecia em São Paulo, onde de um momento para outro todos os aeroportos foram invadidos e fechados, trens e metrôs não circulavam mais e as ruas estavam tomadas pela população indignada.


Décima Sétima Parte
A Intervenção do Padre

Após o “lamentável incidente”, os policiais tentaram se explicar, mas a população estava em polvorosa e “farta de conversa furada”. Muitos já seguravam pedaços de paus nas mãos e ainda outros seguravam garrafas e tudo que podiam usar como arma. Parecia que os policiais cercados seriam linchados mesmo. Suas armas não os salvariam daquela multidão enlouquecida.


Mas a luz no fim do túnel brilhou pálida e timidamente quando o padre local chegou se espremendo em meio à multidão alvoroçada, a fim de colocar-se entre os policiais cercados e as turbas. – Parem com isso, meus filhos! Em nome de Deus!
Porém, para azar do padre, alguém gritou: “Peraê! Não é esse o padre acusado de pedofilia? Não é esse aí que tá sendo investigado por abusar de crianças?”


E as coisas se complicaram para o padreco também, que inicialmente tentava interceder pelos policiais encurralados, e agora estava juntamente com seus protegidos, completamente em apuros. Em vão tentava argumentar, mas para justificar o ditado que diz que “quanto mais se mexe em cocô, mais ele fede”, o miserável foi agarrado pela beca e sugado pela multidão. Só se ouviam os sons de socos e gemidos de dor, enquanto o coitado do padre, preso em um círculo humano, tomava solavancos seguidos, voando de um lado a outro como uma bola de basquete.


De nada adiantavam seus pedidos desesperados de clemência em nome de Deus, pois segundo um agressor barbudo com cara de Lulalá, “Deus não é cúmplice de pederastas e tarados, seu verme!”. E tome-lhe porrada e mais porrada. Debilitado de tanto apanhar, o coitado parecia um boneco desarticulado sendo lançado de um lado para outro dentro do círculo. No meio da multidão, uma velhinha se esforçava para se aproximar, pois também desejava dar sua contribuição.


Assim que finalmente ficou cara a cara com o homem de Deus, agradeceu, aliviada, olhando pro céu enegrecido. – Graças ao bom Deus cheguei em tempo!


O padre suspirou aliviado pela intercessão da beata. “É em horas assim que a ajuda dos devotos idosos faz a diferença”, pensou o padre, o suor do medo a lhe escorrer aos baldes pela face rubra holandesa.


A velhinha sorriu enigmaticamente para o padre, após o que aproximou seu rosto a fim de dizer algo em particular. – Sabe, padre – sussurrou –, quando criança eu estudei num convento de padres. Eu achava que lá estava protegida por Deus. Mas qual nada. Lá eu conheci o inferno às mãos de um padre como o senhor. Sempre que me chamava para a confissão, ele me estuprava. Isso dói até hoje. E eu tinha somente dez anos. Dez anos, padre. Sabe o que é isso? O senhor consegue imaginar como isso me afetou? – os olhos opacos da velhinha brilharam cheios de mistério. – E o pior, padre, é que depois de violentar meu corpo de criança, ele me fazia rezar, rezar e rezar, para que Deus perdoasse minha culpa. Segundo ele, meu corpo estava habitado por mil demônios, e para que eles fossem expulsos e eu ficasse livre, ele precisava fazer aquilo comigo, pois cada vez que ele me violentava, um demônio era expulso. Imagine só, padre, cada vez que ele me estuprava, eu ficava livre de um demônio. E eram mil demônios! Já pensou? E eu ficava tão agradecida àquele jovem padre bondoso e preocupado com minha pureza espiritual. Era tanto agradecimento que às vezes ele me possuía várias vezes ao dia e várias vezes à noite. Ele era tão dedicado. Era realmente um santo homem. Um servo de Deus. E assim, dos dez aos trezes anos, me submeti rigorosamente àquilo, em silêncio, pois aquele era um segredo entre ele, eu e Deus. Se eu contasse para mais alguém, todos os demônios voltariam para o meu corpo, e então me levariam em vida para o inferno. Eu não queria ir pro inferno, não, não, não, não, não, jamais! Enfim, aos treze anos eu estava finalmente livre dos mil demônios. Livre dos mil demônios, sim, mas com um filhinho no ventre. Um filhinho que fui obrigada a abortar. Já pensou no trauma que isso me causou, padre? Pois é.

O padre engoliu em seco. Então num gesto brusco e inesperado, a velhinha com ar dócil e cara de anjo, sofreu uma súbita metamorfose, tascando o cabo de uma bengala na boca do infeliz que quase afundou os maxilares. Dente, não sobrou sequer um. Pelo menos na frente da boca.


A turba enfurecida voltou a atacar o padreco, agora com muito mais fervor. Era tanta porrada, chutes e pauladas que o miserável se mijou e se borrou todinho. Não demorou muito para o miserável cair duro e imóvel, os olhos arregalados em direção aos céus. Dado como morto, foi deixado onde estava. Mas – pasmem! – tão logo a turba enfurecida voltou sua atenção para a viatura que continuava cercada, sem chance de fuga, o padreco todo arrebentado, mijado e cagado, se levantou num pinote e saiu se arrastando em direção à sua paróquia a fim de fugir daquele inferno. Parecia um resto humano, todo esfarrapado e inchado de tantos socos e pontapés que tomara. Um mendigo que o viu passar, a bunda à mostra, mancando e cambaleante a gemer de dor, conseguiu ouvi-lo dizer a sorrir, os olhos inchados e a boca completamente desdentada por conta da bengalada desferida pela velhinha: “Enganei os burros, ah, ah, que otários! Maldita turba de bárbaros, brutamontes e ignorantes. Que o diabo carregue a todos esses selvagens pros quintos dos infernos! E que aquela puta velha seja estuprada por mil demônios!”. E assim, o padre entrou em sua igreja e trancou as portas a fim de evitar que os vândalos entrassem e causassem danos ao patrimônio do Vaticano. Mal sabia o padreco que em menos de trinta minutos sua paróquia estaria em chamas e ele, em sérios apuros pois se refugiaria exatamente onde não teria chance de fuga: lá no alto, ao lado do sino. As chamas se alastrariam com tanta fome de oxigênio que em poucos minutos a igreja estaria completamente devorada pelo incêndio, não restando ao padre pedófilo outra alternativa senão saltar lá do alto e se arrebentar no chão – os braços abertos em forma de cruz –, transformado numa enorme poça de sangue a escorrer rumo à sarjeta onde faria a alegria de uma comunidade de pobres ratos agradecidos.


Décima Oitava Parte
“Quem com ferro fere...”

Quanto aos policiais encurralados, adentraram a viatura e tentaram cascar fora do cerco humano, mas a multidão, como um só homem, capotou a viatura como se ela fosse feita de papelão. Todas as armas dos miseráveis foram tomadas à força, embora nem fosse preciso usar de força, tamanho o terror estampado em seus olhos arregalados diante da multidão ensandecida. Mas o que eles não esperavam é que os populares fossem atear fogo na viatura. E com eles dentro, berrando por piedade. Mas não teve jeito, porque o capeta realmente estava solto.


Foi uma correria e uma gritaria só, antes que a viatura explodisse em mil pedaços, transformando os homens da lei em galetos fritos – ou picadinhos assados. Não que existam justificativas plausíveis para violência de qualquer tipo ou natureza, mas era de conhecimento geral que as polícias militar e civil, como um todo precisavam ser renovadas, reeducadas, reestruturadas etc., senão erradicadas. Porque a corporação, como um todo, era qual uma macieira que produz frutos ruins. Precisava ser cortada pela raiz e jogada na fogueira. Não havia outro jeito. A polícia há muito cheirava mal aos olhos da população traumatizada com tanta violência e mortes causadas por policiais no exercício de sua função. Não havia mais confiança, porém sobrava medo. E onde há medo, não pode haver convivência saudável. Porque medo gera insegurança, e insegurança gera mais insegurança. E se há insegurança, não há confiança. Era fato, a polícia estava cheia de culpa de sangue inocente. E a população estava cheia da polícia. Afinal, segundo a terceira lei de Newton, “toda ação provoca uma reação de igual ou maior intensidade, mesma direção e em sentido contrário”. Essa lei da física é indiscutível no cotidiano da vida humana e seus paradoxos existenciais. Naquele momento, aquela era uma reação mais que esperada da população há muito cansada de ser humilhada e massacrada às mãos daqueles que deviam protegê-la e dar segurança, ao invés de implantar o terror e gerar medo.


Décima Nona Parte
Horror na “Praça do Forró”

Logo chegaram reforços pela avenida São Miguel, mas foram barrados na Praça do Forró, onde havia mais gente que formiga. Eram cerca de quinze viaturas, cinco das quais eram da polícia mais temida de São Paulo. E quem foi que disse que o povo estava fazendo distinção entre a Polícia de Elite e a polícia comum? Que nada, não tinha boi pra ninguém, nem que fossem as SS de Hitler em pessoa, eles não estavam nem aí. Antes mesmo que as dezenas de policiais dessem conta do que estava acontecendo, foram cercados. Os coitados não tiveram nem tempo de pisar seus coturnos no chão.


Foi um balança-balança da peste. Embalados por uma gritaria selvagem e incessante, foi fácil para as centenas de sublevados tombarem as viaturas, deixando-as de ponta cabeça. Os policiais não tiveram outra alternativa senão atirar confusamente sem saber quem estavam acertando. O certo é que várias pessoas tombaram antes que todos os policiais fossem arrastados para fora e brutalizados de tal forma que viraram meros pedaços de carne, com tripas e pedaços de corpos espalhados pra todos os lados.


Foi a cena de linchamento mais horripilante já registrada por câmeras de televisão. E tudo ao vivo. O pior é que na medida em que mais policiais tombavam, a população tomava posse de suas armas, o que só ia aumentando o desejo de continuidade da anarquia, ao passo que elevava o poder de fogo da população completamente fora de si e já alimentada pelo desejo de algo mais que uma simples baderna.


Vigésima Parte
Corpos em Chamas

Após o linchamento, a população enfurecida reuniu todos os corpos dos policiais num montão repugnante – que em muito se assemelhava ao que ocorria nos campos de concentração nazistas –, a fim de atear fogo. Para completar a fogueira humana, ainda juntaram aos corpos dos sessenta policiais, as dez vítimas atingidas durante o enfrentamento. Em seguida trouxeram galões e mais galões de gasolina, conseguidos de um posto ali próximo, e fizeram uma grande fogueira de corpos humanos.


O cheiro de carne assada chegou a quilômetros de distância, inclusive aos helicópteros de televisão que registravam a insanidade. A fumaça negra dominou os céus da região central do bairro, só aumentando a euforia e excitação geral. De novo, os mais exaltados incendiaram também as demais viaturas, intensificando as nuvem negras que se expandiam até o horizonte onde começava a surgir uma enorme lua cheia que logo seria completamente encoberta.


Viaturas e mais viaturas de reforço tentavam chegar ao local, mas era inútil, pois o conflito já se espalhara por toda a capital, da Zona Sul à Zona Norte, da Zona Leste à Zona Oeste, assim como também na Zona Central. E onde quer que eles fossem, eram impedidos de chegar, pois o conflito já se tornara uma verdadeira guerra urbana, na qual os alvos eram prédios públicos, monumentos, bancos, delegacias, lojas, igrejas, casas lotéricas, templos, carros de luxo.


Nada escapava das turbas enlouquecidas. Em todos os bairros da Zona Leste, as principais ruas de acesso estavam totalmente bloqueadas por entulhos, sacos de lixo, madeiras, pneus, móveis velhos, viaturas “confiscadas”, carros, ônibus, postes, etc. E havia muito fogo. Para onde quer que se olhasse, lá estava um monte entulhos em combustão. “Os céus nunca estiveram tão enegrecidos e sombrios, o ar tão irrespirável! “Se isso não é o prenúncio do Apocalipse e o sinal da volta do Senhor para nos resgatar à sua morada celestial, então é o próprio inferno que foi transferido de seu lugar original para o mundo dos vivos!”, gritava o pastor aos seus fiéis apavorados, pouco antes que uma legião de vândalos, liderada pela velhinha psicopata invadisse a igreja e começasse a quebrar tudo, inclusive o pobre pastor, vitimado por uma série de cadeiradas que o deixaram arrebentado, porém vivo, dando graças a Deus por ter sido poupado de lesões mais graves – embora as sequelas resultantes logo mostrassem seus resultados mais sombrios, deixando-o cego, surdo, mudo e aleijado, e por fim, morto. Morto como somente um corpo sem vida pode ficar.


É. Parecia que Deus estava pouco se lixando pro que acontecia. Certa viatura tentou furar um bloqueio humano, atropelando várias pessoas. Mas foi parada e empurrada contra um muro. Os policiais sairam, armas em punho. Mas não parecia haver saída ante tamanha multidão de gente gritando como verdadeiros animais ensandecidos. Aquilo não parecia mais um mero conflito isolado. Tudo que se via era caos, uma bagunça generalizada.


Sem saída, os policiais ameaçavam atirar em quem se aproximasse, pois não havia outra alternativa senão acalmar os ânimos através da bala. Mas as pessoas não se intimidavam. Não existia mais o medo da morte, apenas uma fúria cega que fugia à própria compreensão da razão aparentemente extinta. De repente um homem histérico com um pedaço de madeira na mão avançou à frente dos demais a fim de desferir golpes contra os policiais.

"Vocês assassinaro meu fi, miserávis!"

Um dos policiais atirou e o homem tombou.
A população disparou para cima dos três, que imediatamente se trancaram dentro da viatura numa vã tentativa de vasar por entre a multidão. Mas a turba enfurecida começou a quebrar o veículo com tanta ferocidade que em apenas alguns segundos a mesma se transformara numa verdadeira sucata. As portas foram arrebentadas e os policiais arrastados para fora ao berros. As pauladas tiveram início, incessantes e impiedosas. Em menos de meio minuto, os policiais já estavam irreconhecíveis, meros pedaços de carne remoídos como se houvessem passado por um moedor de carne.


Alguém então lançou um coquetel molotov dentro do que restava da viatura, e o fogaréu teve início. A gritaria de raiva era o prenúncio da intolerância que se estenderia de maneira incontrolável e irremediável, como um vírus mortal se expandindo ao vento. – A população, cega pela insensatez, está completamente seduzida pela sedição – lamentou certo político pela televisão.


A pobre velhinha vítima da negligência num hospital da Zona Leste de São Paulo fora apenas o pavio daquele estopim, como o pavio de uma dinamite que apenas precisava ser aceso para explodir. O que viria a seguir era algo que há muito estava engasgado na população marginalizada, segregada e oprimida por um sistema desigual, cruel, corrupto e racista. Dezenas de policiais massacrados, um monte de viaturas incendiadas. E cada vez mais a população revoltada aumentava em número.


A policia não conseguia mais se impor, pois a situação estava totalmente fora de controle. Viaturas tentavam se evadir, mas eram rapidamente cercadas pelo povo enlouquecido que em poucos segundos deixava tudo de cabeça pra baixo. E sempre tinha alguém com um balde de gasolina, pronto para jogar nos veículos e incendiar em seguida. Os policiais clamavam, implorando piedade, mas os fósforos eram riscados e lançados sobre os veículos ensopados de gasolina que logo estavam em chamas, sob os gritos de terror de homens impotentes sendo assados vivos. E tudo sendo mostrado ao vivo pelas câmeras de televisão a partir de vários helicópteros que sobrevoavam os bairros, assim como pela internet em imagens aterrorizantes feitas pelos próprios revoltados diretamente dos locais.


Um enorme efetivo foi enviado e distribuído pelos locais mais conturbados para acalmar os ânimos e controlar as multidões ensandecidas. Mas os policiais se viram confrontados com algo inusitado, pois as bombas de gás lacrimogênio simplesmente não intimidavam as turbas. Além do mais, o que era lançado contra eles, logo estava de volta dispersando os próprios policiais.

Balas de borracha pareciam inúteis. E quando a massa enlouquecida avançou contra as fileiras minúsculas, era como um formigueiro a disputar uma presa. Bastou então que um policial aterrorizado disparasse um tiro letal, para que os demais começassem a atirar sem piedade. Era gente tombando em cima de gente, num verdadeiro massacre. E mesmo assim a população continuou correndo e se aproximando cada vez mais.


Os helicópteros da polícia receberam ordens de atirar, porém apenas no intento desesperado de dispersar o povo revoltado, que certamente iria esmagar as formações policiais em terra. Porém, mesmo sob tiros e um monte de gente sendo alvejada, a população continuou avançando. Então de repente, como um salvador da Pátria, não se sabe de onde, alguém disparou um tiro de bazuca que fez o helicóptero da polícia militar girar como um pião e se espatifar numa explosão ensurdecedora exatamente entre as dezenas de policiais em terra, causando uma verdadeira matança, que só foi complementada pelo povo, que saiu dando pauladas às cegas e terminando o serviço iniciado pelo próprio helicóptero.


O povo perdera a razão, gritando alucinadamente como um bando de selvagens sedentos por sangue, e aquilo só os deixava ainda mais eufóricos e excitados, tomados pela adrenalina da loucura coletiva. Outro helicóptero se aproximou, de lado para facilitar a mira do atirador, que não errava um alvo sequer. Mas não se sabe de onde, uma sequência fulminante de tiros de fuzil riscou os ares, atingindo o atirador em cheio. No momento seguinte, um novo disparo de bazuca fez-se ouvir. Houve uma explosão e o helicóptero se estilhaçou nos ares, mais parecendo uma chuva de artifícios.