Translate this Page
ONLINE
23
Partilhe esta Página

A Maldição do Barbatão Negro - CAPÍTULO 11
A Maldição do Barbatão Negro - CAPÍTULO 11

NOTA AO LEITOR: PARA SUA TOTAL COMODIDADE, ESTE LIVRO PODE SER LIDO NA ÍNTEGRA POR VOZ NEURAL SINTÉTICA, BASTA VOCÊ CLICAR NO BOTÃO LOCALIZADO AO FINAL DESTA PÁGINA! 

  

CAPÍTULO 11

AMARGA VINGANÇA

 

 

O touro foi-se afastando lentamente
Da antiga árvore amaldiçoada
E fungando, parou bem no meio
Do antigo e sinuoso atalho,
Como se fosse absoluto senhor
Daquela temida e confusa estrada.


José Maria posicionou o rifle,
Pronto e já em posição.
Sentia o bater descompassado
Do seu nervoso coração,
Mas estava resoluto e preparado
Para entrar logo em ação.


Apesar do tempo medonho
E da misteriosa cerração,
O mancebo teve repentinamente
Uma estranha sensação,
Pois lhe pareceu ver sua mãe
Do lado oposto do touro “cão”.


Conteve o garanhão orgulhoso,
Muito ansioso pela batalha,
O qual empinava, garboso e enfadado,
Querendo com tudo ir à frente,
Mas o breu se intensificava
Igual negra mortalha patente.


Tentando enxergar melhor,
Ele ficou bem concentrado.
Foi aí que viu realmente a mãe
Na extremidade oposta,
Parecia um tanto cambaleante
E em transe, o olhar assustado.


Ele aqui, o monstro no meio
E sua mãe lá do outro lado;
Quando ele tentava ir à frente,
O bicho obstruía sua passagem,
Claramente mal-intencionado
E com ar de indiferente desafiado.


Os três postados em linha reta,
Numa perfeita simetria:
O touro de frente pro rapaz
E de costas pra Maria.
José Maria olhando pra mãe,
A mãe olhando para José Maria.


“Coragem é resistir bravamente
Quando o senso de vingança oprime
E faz do macho, capacho.
Vingança é coragem covarde,
Que insufla o ego do fraco
Induzindo-o rumo ao laço.”



(Extraído do diário, de José Maria C. M. Xavier, 09 de Agosto de 1972)

 

– Ou me acabo ou me esbaldo!
Praguejou mirando o rifle “Papo Amarelo”. *
A fronte do monstro era o alvo.
Disparou e ouviu um grito feminil...
Do outro lado sua mãe tombou,
Enquanto o touro continuava a salvo.

 

*Winchester , modelo 1873, calibre 44, conhecido como “Rifle Papo amarelo”
– foi usado no período inicial do cangaço (época anterior a 1926).



Olhos arregalados e incrédulo ao ver,
O rapaz entendeu que era uma armadilha.
Agoniado, sentiu vontade de morrer,
Contemplando a mãe caída na trilha
E ele sem poder transfixar,
Como que preso em uma ilha.


Em desespero, ódio e agonia,
Tentava avançar pro lado oposto,
Mas o demônio insano o impedia.
Um fogo de indescritível desgosto
Queimava-lhe todo o rosto
E uma terrível aflição o consumia.


Sem mais nada a perder, exceto a razão,
Voltou a atirar sequencialmente, tiro após tiro,
Até a munição por fim se esgotar.
Soltou o rifle e num grito, esporeou Bretão,
Fazendo-o relinchar de antemão.
Agora era morrer ou matar.


O cavalo empinou rumo ao céu
Em meio à neblina sobrenatural.
O jovem, tomado de ódio irracional,
Saltou de Bretão rumo ao chão.
Na mão esquerda segurava o punhal,
Enquanto na direita, firme, o facão.


Lançou-se contra o ser descomunal,
Desferindo golpes sem contentamento.
Quando o facão penetrava no touro,
Era o mesmo que atingir o vento.
E quanto mais o moço lutava,
Mais gritava e chorava de tormento.


E a luta feroz prosseguiu nas trevas,
Até que o rapaz sucumbiu sob o cansaço.
Joelhos por terra, curvou-se exausto,
Mantendo o fôlego em nível parcial,
Enquanto o demônio bovino o rodeava
E o vento girava em estonteante espiral.


Quando pensou que ia ser atacado,
O maldito veio até ele fungando.
Impaciente, balançava a cabeça,
Enquanto furioso girava o rabo,
Os olhos brilhando em fogo brando
E o tempo medonho, cerrado.


“Deixe meu filho em paz, por favor...”
A voz titubeante era um poderoso clamor.
Maria estava em pé, cambaleante.
O monstro voltou-se rumo a ela
E liberou um mugido arrepiante
Mas ela não esboçou o menor temor.


O sangue escorria de seu peito ferido.
O touro deslizou e parou diante dela,
Raivoso e fungando a babar.
Até o calor de sua respiração era sentido,
Quando seus olhares, frente a frente
Pareciam fixos num duelo de olhar.


Maria, que se tornara delicada e frágil,
Mesmo ferida, agora era uma fera
Pronta a tudo para salvar seu filho.
Resfolegando em busca de ar,
Parecia penar fora da atmosfera,
Mas como mãe, manteria brio e brilho.


“Por Deus, eu juro: três você conseguiu,
Mas a quatro não chegará.
Qual o prazer em matar gente inocente?
Eis meu sangue, pode se fartar!
Depois vá embora para sempre
E nunca mais volte pra cá...”


Maria vacilava, mas não se permitia cair.
O mundo escuro ficava mais negro,
Enquanto luzinhas começavam a surgir
E ela sabia que logo iria sucumbir,
Mas ficaria firme em resistência
Até ver o touro matador partir.


O bicho fungou na face serena de Maria
Que já vagava num devanear moribundo.
Seu hálito era uma quintura putrefacta,
Um misto odorífico de toda podridão do mundo,
Como que carniça viva a penar,
Oriunda do monturo mais profundo.


O concreto espectro,
Como que a sorrir,
Cheirou o peito de Maria
Enquanto sua vida vertia.
Até parecia querer sentir
O sangue que fluía.


Arquejando como o tinhoso,
Lambeu muito excitado
O vertente líquido vital.
Depois, na direção dos céus,
Sacudiu violentamente a cabeça,
Como que em satisfação total.


Em seguida afastou-se lentamente
Rumo ao negro pé de juazeiro,
Onde parou ao lado da cruz.
Seus olhos pareciam um braseiro,
Antes de seguir para a densa caatinga
E ser engolido pelo enigmático nevoeiro.


Tão depressa quanto sumiu,
O luar intenso reapareceu
Prateando o mundaréu sertanejo.
Maria murmurou algo sem nexo.
Reclamou do friento breu
E do tempo feio, muito complexo.


Nem percebeu que antes de tombar,
O filho a abraçara em pleno ar,
Num doloroso e choroso amplexo,
Vendo a mãe gradualmente
Definhando rumo à morte
Num trêmulo balbuciar desconexo.


A noite era testemunha
De um desespero sem esperança
E o lamentar de um jovem vaqueiro
Que desejava morrer primeiro,
A ter que olhar a mãe delirando
Vítima de seu próprio tiro certeiro.


Maria, trêmula e entorpecida,
Deslizou a mão pela face
Do amado filho a chorar,
Depois sorriu lívida e satisfeita,
Então sua cabeça tombou para o lado
E ela parou de respirar.


José Maria ficou ali sem noção,
Apertando o corpo da mãe contra o seu,
Enquanto a cruz de José, seu pai,
Não muito longe, parecia observar
O abafado e compulsivo galopar
De quatro vaqueiros apressados a chegar.


Ficaram estarrecidos e chocados
Diante daquela cena dantesca:
A jovem patroa, estendida, morta
Nos braços do filho vaqueiro,
Enquanto o nevoeiro sumia na noite fresca
E no ar imperava um forte mau cheiro.

Cerca de cinquenta metros de distância,
Seguindo retamente no sentido norte,
Lá estava o corpo ensanguentado do rapaz
Que queria ser doutor pra salvar vidas,
Mas que ali, muito precocemente,
Defrontara-se com a própria senhora morte.

 

 Paradoxal – Mente Insana

 

“Viver sem sofrer é não viver plenamente.
Porque a vida é feita de coisas boas e coisas ruins, de convergências e divergências.
E é justamente a junção dos opostos, na plenitude de seus desejos e dissabores que faz com que a vida seja bela, interessante e prazerosa – embora tudo esteja profundamente diluído numa dinâmica de profusa e paradoxal insensibilidade inata.
Choramos e sorrimos, brigamos e buscamos a paz. É tudo realmente muito confuso e intenso, razão pela qual imagino que o amor e a dor, embora intrínsecos, compõem uma unidade extrínseca.
Enfim, a existência humana – seja na abundância das regiões exuberantes e vívidas do Sul, ou na catastrófica exuberância rústica e peculiar dos sertões – é feita de experiências para serem vividas e desafios para serem vencidos.
Sem estas coisas, que graça teria a vida?
Somos meros ignorantes, nascituros ainda, embora nessa alucinação vivencial, tenhamos a vaga noção de existencialidade. Mas a verdade é que ainda nem chegamos aqui.
Somos apenas um sonho nessa imensidão. O universo é real, nós somos algo como um devaneio cosmológico, nada mais.
Pouco sabemos, e do pouco que sabemos, nada sabemos. Temos muito o que aprender ainda, hoje, amanhã e durante os milênios futuros.
Estou divagando. Do muito que disse até aqui, confesso: nada entendi.

JOSÉ MARIA CACIANO MANOEL XAVIER
Recife, 28 de maio de 1931.
(extraído de seu diário pessoal)