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Doce é o pecado, amargas são suas conseqüências.
                         Nyll Mergello

    –– ... Ainda ontem recebi um. Hoje, como o senhor pode ver, já recebi estes dois. A possibilidade disto voltar a se repetir manhã é gigantesca, e muito provavelmente depois de amanhã, e depois, e depois, e assim sucessivamente. É um ciclo que parece não ter fim.

    –– E ninguém se importa com isto?

    –– Fazer o quê? A lei do silêncio por aqui é muito mais forte que o desejo de se fazer justiça. E o medo é algo que conclama ao silêncio. Afinal, como todo mundo sabe, “boca fechada não entra mosca”.

    De onde estava, recostado num poste, ele podia observar os homens sentados sob a sacada do bar. Conversavam entre si, mas evidentemente cada conversa era um segredo inacessível para forasteiros. Quando o enterro passou, no entanto, um deles retirou o chapéu da cabeça. Os demais repetiram o seu gesto.

    –– “Maquinalmente, saudavam o morto” –– murmurou o homem enquanto olhava a cena. –– “Distraídos, estavam todos voltados para vida, absortos na vida, confiantes na vida.”

O caixão negro passou lentamente, conduzido por seis cabisbaixos e abatidos afro-descendentes. Logo atrás do caixão, incontida em sua dor, a viúva amparada por seus dois filhos, os mais novos órfãos de Petrocity.

    O céu enegrecido parecia compadecido com a dor daquela gente oprimida.

    Ao passar de frente à sacada do bar, reduto dos homens fortes de Petrocity, a viúva parou e encarou Dom Xavier de Carvalho. Seu olhar era cheio de dor e embora não houvesse qualquer resquício de ódio ou maldade, definitivamente aquele não era um olhar qualquer, ostentava uma firmeza cheia de determinação e significado. 

Dom Xavier curvou a cabeça solenemente. Mas como resposta à referência do coronel, a mulher cuspiu no chão. Não uma vez, mas três vezes seguidas. E fez isso sem titubear, enquanto sustentava o olhar amargo com extrema frieza. Aquilo era uma demonstração explícita de repúdio e nojo. E isso, diga-se de passagem, dirigidos ao homem mais poderoso daquela cidade e mandachuva de toda aquela região.

    –– A justiça dos homens falha, mas a de Deus, apenas tarda.

    Murmurou ela. O silêncio fúnebre que reinava permitiu que todos ouvissem seu desabafo.

    –– Um dia todas as verdades ocultas vem à tona. E mesmo quem se acha acima da lei, uma hora tem que acertar as contas pelos seus erros, seja diante dos homens... ou diante de Deus.

    No momento seguinte, a viúva, amparada pelos filhos, prosseguiu no ritmo do cortejo que seguia o féretro sombrio, no qual inerte de desejos e ausente de vida, estava esticado o corpo de um homem que até ontem esbanjava atitude e coragem notória. Mas sua memória fora apagada a tiros de execução por em emboscada armada e executada por pistoleiros, homens desconhecidos. No entanto, lá no fundo, dadas as divergências correntes e os personagens envolvidos em antagonismos políticos, não era necessário conjecturar hipóteses para chegar ao mandante da execução. Todos os caminhos conduziam inexoravelmente ao poderoso coronel Xavier. 

    O coronel soltou uma nervosa e fumacenta baforada de charuto enquanto contemplava o cortejo que seguia rumo ao velho cemitério local.

    -- Essa é corajosa! É digna do marido morto, digna de um cabra macho. E diria que até mesmo digna de mim, homem macho semelhante ou igual ainda está por nascer. Se é que a vida há de conceder tamanho privilégio a um outro mortal qualquer. Hum! Mas valentia que se opõe a mim por aqui só tem um destino. E ela... tadinha, está indo justamente pra ele.

Por: Nyll Mergello

Continua...

Negrotério: junção das palavras negro e necrotério, expressam uma ideia de preconceito racial contra a raça negra, como se negro e necrotério fossem um complemento. Dessa forma, é como se lugar de negro fosse no necrotério, segundo a visão de um racista nato. Isso se aplicaria também ao racismo estrutural, onde as pessoas meio que "inocentes", usam termos "sem maldade", porém carregados de conotação pejorativa ou negativa.