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Nyll Mergello
A Lenda da Negra do Imbuzeiro
Primeira Parte
Não me perguntem sobre a época específica que esse fato ocorreu, pois eu não saberia dizer. No entanto, tendo em vista que essa história vem sendo contada em minha família por gerações, transmitida de pais para filhos, de avós para netos, deve ter ocorrido por volta do final do século dezenove ou primeira metade do século vinte. Mas uma coisa é certa: aconteceu no Brasil. No Nordeste, para ser mais exato. E para ser ainda mais exato, eu ousaria chutar que aconteceu no estado de Pernambuco. N’algum lugar desolado do infinito sertão que se estende imponente sobre o horizonte, onde assombrações errantes se misturavam aos negros espectros da branca caatinga. Espectros humanos de desumana face, embora de carne e osso. Mais osso que carne. Ressequidos pelo castigo da terra assolada pela impiedade do sol, senhor da vida e da morte.
Segunda Parte
Imagino que era um dia de sábado, quando acontecia a feira da cidade e todos afluíam para lá, pessoas de toda a região. Marchands com seus animais para abate. Jovens ansiosos por diversão. Famílias inteiras. Feirantes. Enfim.
Bom, ao final daquela tarde o feirante e seu filho desfizeram a barraca e arrumaram as cargas. O garoto contava com provavelmente uns oito, nove, no máximo dez anos de idade.
Mais uma boa feira, mais uma semana, mais um dia de trabalho. Cangalhas e caçuás sobre o dorso dos animais. Três jegues, dois burros e um cavalo. O homem no cavalo livre de cargas liderava a marcha na longa volta. O filho sobre uma cangalha ladeada por dois caçuás, comandava um burro dócil.
Despediram-se dos companheiros feirantes e partiram antes do anoitecer. Rumo ao lar léguas além da serra.
Terceira Parte
Cerca de uma hora depois chegaram ao sítio de seu primo, ao lado da estrada, nas partes altas da região, próximo do sopé da serra. Pararam para botar os assuntos em dia. E também para descansar, comer algo e dar água para os animais, que não foram descarregados. Conversa vai, conversa vem. Lá para dentro as crianças se divertiam, falando sobre coisas de crianças. Mas depois de um tempo, o homem disse que precisavam partir, pois queria aproveitar o frescor da noite e chegar ao destino antes da alvorada.
Instaram com ele para que pernoitasse, mas o homem não se permitia dissuadir de sua decisão. Tentaram convencê-lo que a criança estava exausta do dia de trabalho e que uma noite de descanso faria bem a ambos, que assim poderiam partir devidamente recuperados antes da aurora. Falaram até das muitas onças que vagavam nas noites daquela região. Mas para o caso de uma onça importuná-los, o homem garantiu que seu rifle daria conta do recado. Enfim, nada funcionou. O feirante era irredutível e estava decidido a partir naquela mesma noite de qualquer maneira. Num canto, as crianças apenas assistiam torcendo pela melhor decisão. O garoto, em seu íntimo, torcia para que seu pai optasse pelo pernoite. Mas ficou triste e decepcionado pela decisão do pai torrão.
Quarta Parte
Feitas todas as tentativas, por fim não restou aos parentes anfitriõesoutra alternativa senão ceder e desejar boa viagem ao primo teimoso. Os tios abraçaram o sobrinho e tentaram confortá-lo prometendo ir visitá-los muito em breve. Mandaram lembranças para a prima e para as meninas, e pouco depois pai e filho estavam novamente na estrada.
A lua cândida do sertão prateava o horizonte serrano. O ar estava fresco, convidativo para uma boa noite de sono. Mas era preciso seguir viagem. Ainda distavam cerca de meia légua da passagem dentro da serra. Mas após cruzar a passagem, várias léguas de distância ainda os separavam do lar. Porém, no ritmo certo, chegariam antes do amanhecer. Ou, no mais tardar, dependendo de algum imprevisto, antes do meio–dia.
Quinta Parte
Cruzaram a passagem da serra e passaram pela capelinha onde os romeiros e fiéis, em busca de cura milagrosa, depositavam réplicas de órgãos e membros humanos com suas respectivas enfermidades. Pernas, braços, mãos, corações, fígados, olhos, orelhas, dedos, etc. Uma infinidade de objetos feitos de argila, gesso, madeira, enfim. Mas também havia muletas, entre outros acessórios úteis usados por pessoas enfermas. A crendice popular, antes de ser um universo de ignorância, é um abismo de mistério. Para ser julgada é preciso que primeiro seja compreendida.
O garoto observou a capelinha, enquanto passavam por ela. Sentia arrepios sempre que passava por ali. Ficava sempre se perguntando se os donos daqueles objetos, representantes de sua fé, tinham encontrado a tão implorada cura de seus males. Não conhecia ninguém que tivesse deixado algo na fantasmagórica capelinha.
A estrada piçarrenta era agradável, mas também dificultava o ritmo dos animais. A música dos grilos era incessante, até convidativa a um sono. O movimento suave do animal se assemelhava ao vai e vem de uma rede, como um carinho materno conduzindo ao sono. A criança estava cansada, seus olhos se fechavam involuntariamente e vez ou outra seu corpo tombava subitamente, levado por repetidos sonhos lúcidos que se confundiam com a realidade, fazendo com que ele tivesse a sensação de estar caindo em abismos. Volta e meia seu corpo exaurido. Mas seu cansaço não passou despercebido do pai, já dominado pelo peso de consciência por não ter pernoitado na casa dos parentes. Logo à frente, ao lado da estrada, um enorme imbuzeiro, ponto de parada de viajantes desde tempos longínquos, jazia imponente e indiferente ao tempo que castiga e mata os homens. Senão antes, por que não agora? A pressa de chegar ao destino em conflito com a exaustão.
E foi assim que o pai aproximou o cavalo e brincou com o cocuruto do filho, avisando-o que descansariam o resto da noite. Antes de o sol nascer eles prosseguiriam. Uma parada não ia fazer mal. A criança sorriu satisfeita.
Sexta Parte
Pouco depois estavam sob o frondoso umbuzeiro, que se expandia como se quisesse dominar a terra inteira.
A criança ajudou o pai a descarregar os animais. Não era preciso descarregar por completo, só o suficiente para aliviá-los um pouco do peso. Enquanto os animais pastavam ali ao redor, o homem procurou três pedras boas para servirem como trempes. Um café torrado acompanhado de uma farofada à base de charque serviria para forrar o estômago e aliviar o a exaustão. Logo a fogueira estava acesa a pleno vapor. Duas redes montadas dariam aos dois o descanso merecido. O menino deitou em sua rede a fim de aguardar enquanto o pai preparava a refeição. Seus olhos refletiam as chamas do fogo a crepitar. O fogo a iluminar-lhe a face era um hipnótico convite ao sono. Logo adormeceu pesadamente, indiferente ao cheiro de charque e café torrado que já começava a se expandir no ar.
Tudo pronto, o pai pegou uma cuia grande com farinha a fim de preparar a farofa. Tinha assado bastante charque, mas não fazia mal, o que sobrasse seria levado pra casa. Pegou uns bons pedaços e envolveu na farinha, mexendo e remexendo. Depois começou a cortar em nacos pequenos como o filho gostava.
Sétima Parte
Estava distraído a preparar o charque, quando uma estranha sensação o fez olhar para um dos grossos galhos do imbuzeiro, não muito alto. E então tomou um susto ao dar de cara com uma bizarra figura negra a observá-lo, os olhos brilhantes. Era uma criatura enorme de estatura, dava pra perceber. O homem ficou estático, dominado por um terror mórbido que o paralisou. Como se aguardasse o momento de ser percebida, a criatura se deslocou do galho para o próximo galho acima das redes e de lá esticou a longa perna até o chão, do lado oposto da fogueira, tendo atrás de si a criança e à sua frente o homem desenganado de pavor. Ela se postou de cócoras, de modo que ficou claro que tudo em seu corpo era desproporcional. Sua cabeça, sobre um pescoço longo e fino, se estendia à frente por entre as coxas esqueléticas que se estendiam bem ao alto, mostrando joelhos finos e pontiagudos que sustentavam pernas muito longas. Seus olhos faiscavam, fixos no homem apavorado.
Depois de um tempo sem conseguir respirar, o coração enlouquecido e o corpo a tremer sem cessar, o homem por fim conseguiu balbuciar algo.
– Quer carne?
– Quero, tem?
– Sim...
O homem cortou um pedação e deu à criatura, que recebeu e enfiou na boca de uma só vez, mastigando sem tirar os olhos do sertanejo, como se quisesse devorá-lo também. Ao perceber que ela parara de mastigar e lambia os beiços, ele voltou a perguntar, a voz trêmula.
– Quer mais carne
– Quero, tem?
Ele voltou a cortar mais um naco e lhe entregou. E de novo ela mastigou como se o pedaço não passasse de um petisco. E ele lhe deu mais. E assim chegou ao último pedaço, quando ele perdeu as esperanças.
– Quer mais carne?
– Quero, sim! Tem?
– Coma esse, eu vou buscar mais, é logo ali...
Ela olhou na direção em que ele apontava. À noite clara osanimais carregados podiam ser visto nitidamente pastando ao redor do imbuzeiro.
– Vá, mas não demore, eu tô com muita fome!
Oitava Parte
A barriga do homem doía muito, quando ele se levantou, as pernas incontrolavelmente trêmulas. Mesmo assim, aos trancos e barrancos, conseguiu andar rapidamente rumo aos animais. Já ao lado de seu cavalo, direcionou o olhar rumo à cela. Lá estava seu rifle, bem ao alcance de suas mãos. Mas o torpor causado pelo medo mórbido que sentia o impediu de tenta a ousada empreitada de pegá-lo.
Morto de pavor, olhou para trás e pôde ver que a pavorosamulher estava com a cuia na mão, já devia ter devorado o último pedaço de charque. Agora comeria a farofa preparada para ele e o filho. O homem ultrapassou a área em que estavam os animais e chegou a uma grande moita onde não podia ser mais visto pela criatura. A estrada estava ao seu lado. O medo cegava-lhe qualquer resquício de racionalidade, e num ímpeto de sobrevivência, ele simplesmente se deixou levar. Quando deu por si, já corria a passos largos, sem se importar com nada mais. E quanto mais corria, mais desejava correr, só queria escapulir dali para o mais longe que pudesse chegar. E assim, correu, correu, correu e correu, mais e mais.
Enquanto isso, no acampamento sob o pé de imbuzeiro, a criatura ficou impaciente com a demora do homem. Levantou-se e seguiu a longos passos até os animais, que ficaram impacientes e agitados com sua presença. Cheirou o ambiente e seguiu no rastro do cheiro deixado pelo homem. Rastro de medo. E o cheiro do medo a levou à estrada e à direção tomada pelo medroso. Ela praguejou em alta voz.
– Maldito!
E disparou pela estrada na mesma direção seguida pelo homem.
– Ô, diabo, te pego sim!
Gritou ela, enquanto corria como o vento. E quanto mais corria, mais gritava ensandecida. E logo o homem começou a ouvir seus gritos de raiva a persegui-lo implacavelmente, impulsionada pelo ódio inumano e os gritos repetidos.
– Ô, diabo, te pego sim!
Ele olhou para trás, sobre os ombros. A enorme sombra negra ao longenão demoraria a alcança-lo. Resfolegando, ele se esforçou ao limite de suas últimas forças a fim de aumentar a distância que os separava, mas parecia inútil. Cada passo da criatura equivalia a pelo menos três ou quatro dos seus, senão mais. O desespero aumentava cada vez que os gritos esganiçados se aproximavam mais e mais. Foi então que uma fagulha de esperança surgiu na curva da estrada. A fazenda de Nhô Simão, não muito distante, mas àquelas alturas daquela situação de calamidade, não tão perto também.
E os gritos diabólicos da criatura chegavam cada vez mais perto, como se ela já estivesse às costas do homem aterrorizado. Quanto mais ele chegava perto dos currais, mais ela se aproximava de sua retaguarda, lançando à frente as mãos longas e suas unhas afiadas na intenção de rasgar as costas do pobre coitado. E finalmente, quando ela abriu os braços para estreitá-lo num afago mortal, ele deu um salto fenomenal, impulsionado pelo pavor, fazendo-a abraçar o vento. Com a força desprendida para o salto que salvaria sua vida, a calça do homem se rasgou todinha, e enquanto ele ainda voava sobre a porteira do curral, se lambuzando todinho de bosta e cagando todos os bois abaixo dele, ainda conseguiu ouvir o grito da criatura:
– Foi a tua felicidade, diabo!
O homem caiu entre os bois e as vacas, que segundo acredita-se são sagrados, pois o menino Jesus nasceu dentro de um estábulo e foi colocado numa manjedoura.
A criatura então se afastou, retornando pela mesma estrada por onde tinha vindo. Seus gritos de ódio, se maldizendo e amaldiçoando o homem, podiam ser ouvidos incessantes na noite.
Ele se levantou ainda tremendo muito e cambaleou até a casa principal, onde bateu desesperadamente na porta, e antes mesmo que aparecesse alguém, ele desmaiou de exaustão. Levaram-no para dentro e molharam seu rosto para despertá-lo. Depois quiseram saber o que acontecera. E ele contou tudo, só então se dando conta que deixara seu filho dormindo numa rede sob o pé de imbuzeiro. Todos os homens da fazenda foram reunidos a fim de seguirem imediatamente em socorro da criança.
Nona Parte
No ínterim, no acampamento sob o imbuzeiro, eis que o menino despertou de seu pesado sono, alheio aos últimos acontecimentos. Sentou-se na rede e chamou pelo pai.
– Papai? Papai? Papai! Papai! Papai...
Mas não houve resposta nenhuma. Procurou ao redor, mas nada. Seguiu até a estrada e imaginou que seu pai, por alguma razão qualquer, decidira ir até a fazenda de Nhô Simão. A criança sempre viajava por aquela estrada com o pai e portanto sabia que a fazenda não ficava muito longe dali. Instintivamente, começou a caminhar na direção da fazenda, sob o claro intenso do luar que deixava a noite quase dia. Segurou o terço e começou a rezar “Ave Maria”, como aprendera com os pais. E seguiu em frente. Após caminhar alguns minutos, notou ao longe uma pessoa que vinha provavelmente da fazenda de Nhô Simão. Seria seu pai? Mas logo percebeu que era uma pessoa muito alta e magra que andava de um jeito muito desengonçado. E por fim viu que era uma mulher. A mulher mais assustadora que já vira. Quando ela finalmente parou à sua frente, a respiração arquejante e o vestido esfarrapado balançando ao vento, o garoto teve a clara percepção de que algo estava muito errado. Seu corpo começou a tremer dos pés à cabeça. Mesmo assim, após alguns segundos de relutância, lentamente e sem parar de rezar o terço, direcionou o olhar em direção à cara da criatura. Era uma cara magérrima de onde dois pares de olhos enormes e esbugalhados o observavam fixamente. Sobre a cabeça seca e alongada da estranha mulher, cabelos crespos abundantes criavam uma sombra que o impedia de ser ofuscado pelo luar intenso. Voltou a abaixar a cabeça lentamente, ao passo que rezava com mais fervor. Pensou que se não olhasse a aparência daquela mulher apavorante, evitaria que o medo o dominasse com tanta força. Mantendo a cabeça reverenciosamente baixa, olhava com espantoaqueles pés enormes e esqueléticos, donos de unhas pontiagudas como as garras de uma fera selvagem.
Por fim, a criatura fez ouvir sua voz.
– O que é isso, menino?
Apontou o longo dedo fino para o rosário em suas mãos.
– Um terço, respondeu ele.
Com a longa unha do dedo apontador ela ergueu o terço até a altura dos olhos. Balançou a cabeça em negação e berrou:
– Coisa inútil, menino besta!
Berrou ela lançando o objeto longe. O menino continuou quieto, de cabeça baixa e a pronunciar o terço.
– Tu tens pai, menino? Gritou a criatura.
O menino não respondeu, apenas continuou a rezar o terço em voz baixinha, morrendo de medo.
– Menino, quem é teu pai? Quem é teu pai, menino?
– É um homem...
Respondeu a criança no limite de seu terror mais impensado.
– Esse homem tem nome, menino?
– É um homem...
– Menino idiota, qual o nome de teu pai?
– É um homem...
A criatura, dominada por sua fúria insaciável, agarrou o garotinho e o ergueu como se fosse um bonequinho. Cheirou-o dos pés à cabeça, em seguida o aproximou mais a fim de olhá-lo bem de perto, com se quisesse vislumbrar nele algum traço conhecido. E ao olhar dentro de seus olhos, praguejou alto.
– Ô, diabo, te pego sim! E te peguei!
Chacoalhou a criança com uma só mão acima de sua cabeça, indiferente aos gritos de terror do menino. Enquanto praguejava a sacudir a criança no ar, o monstro não se decidia sobre o que fazer. Então num ímpeto de monstruosidade, lançou-a com toda sua força contra um toco pontiagudo que tinha ali bem à beirada da estrada. O toco traspassou a criança, destroçando seus órgãos internos e deformando seu corpo frágil. Mas ela não parava de berrar de ódio, amaldiçoando tudo ao seu redor. Não parecia satisfeita de matar a pobre criança. Por fim seguiu rumo ao acampamento, onde destruiu tudo. E quando não tinha mais nada para rasgar, avançou contra os animais amarrados e os retalhou com suas unhas gigantescas e afiadas. Depois desapareceu na noite do sertão enluarado.
Décima Parte
Final
Quando Nhô Simão e seus homens partiram para socorrer a criança, não imaginaram que se deparariam com cenas tão dantescas. Primeiro encontraram o garotinho morto à beira da estrada. Ali Nhô Simão deixou alguns homens armados e um pai aos prantos, num desespero de dar pena, abraçado ao filhinho morto que conseguiram retirar daquele toco pontiagudo.
Nhô Simão e o restante seguiu rumo ao “imbuzeiro dos peregrinos”, onde se depararam com a segunda cena de horror. Todos os animais estavam retalhados, como se uma fera os tivesse estraçalhado a unhas e dentes. Tudo era um caos.
Por dias a fio foi empreendida uma busca frenética em toda aquela região, desde as áreas planas até os confins da serra. Homens de várias fazendas e das cidades próximas participaram ativamente. Mas nada foi encontrado. O tempo passou e por fim o caso virou lenda. E foi assim que surgiu a lenda da “nega do imbuzeiro”, ou a “negra do umbuzeiro”, dependendo de que região do nordeste ou do Brasil o caro leitor seja natural.
Fim