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O Diário de Maria Elisheva - Os dramas de uma vida
O Diário de Maria Elisheva - Os dramas de uma vida

O Diário de Maria Elisheva


    A chuva torrencial caía sem dar trégua, inundando impiedosamente o vale verdejante e alagando irremediavelmente as plantações. Àquelas alturas, tudo parecia rumar para o caos. Todo o trabalho duro de um ano inteiro estava perdido. Num canto, debaixo do ipê-roxo, lá estava o velho carro-de-boi, há muito, muito tempo em desuso por conta da chegada do progresso. Parado e apodrecendo sob as intempéries, resistia qual poderosa lembrança fiel de tempos remotos. Os céus, absorvidos por uma negritude diluvial, pareciam manipulados por um poder revolto e cruel, decidido e obstinado a afogar aquele pequeno paraíso na terra.


    O capataz mordeu o lábio inferior e deu de ombros, meneando a cabeça num sinal de impotência ante as forças naturais irrepreensíveis em sua força avassaladora. Suspirou desalentado e retirou o chapéu da cabeça. Passou a mão nos cabelos escuros e ligeiramente grisalhando no auge de sua força aos quarenta e poucos anos. Enxugou o rosto molhado e esfregou a barba rala que dava-lhe um aspecto de relapso. Em seguida devolveu o chapéu à cabeça e fechou a capa negra. Encolheu-se virando o rosto em direção ao chão a fim de evitar o vento intenso que lançava a chuva numa diagonal quase horizontal, depois saiu correndo do alpendre na direção do casarão, único lugar onde se podia avistar vestígios de luminosidade
que não fosse causada pelas explosivas descargas elétricas do constante relampaguear a cortar os céus e antecedendo ensurdecedores trovões. Era um cenário de aspecto quase apocalíptico.


    Subiu os degraus correndo e com a habilidade de quem estava habituado ao lugar. Não poderia ser diferente, já que sempre vivera ali.

    Antes de abrir a enorme porta de madeira marcada pelas décadas de existência, respirou fundo e bateu inúmeras vezes as botas de couro uma na outra, a fim de desgrudar a lama aderente que adicionava um peso extra aos seus passos largos, que lhe proporcionavam a agilidade e rapidez necessárias a alguém superativo e dono de aproximadamente noventa quilos de massa e músculos muito bem distribuídos em seus cerca de um metro e noventa de altura.


    De fato, apesar de homem rude apegado às coisas do campo, Miguel não era alguém que passava despercebido. Jogou a capa ao lado da porta, indiferente à aproximação de dois grandes cães negros que se aproximaram sem alarde, num claro sinal de intimidade e
respeito. Ele acariciou ambos, depois seu pelo corredor.


    Dentro do casarão, o corre-corre de mulheres era angustiante e à primeira vista, causou-lhe certo grau de aflição. Uma velha senhora negra, com ares de preocupação, quase o atropelou resmungando, tamanha a pressa com que passou a fim de subir os degraus que davam à parte superior do antigo casarão. O homem retirou depressa o chapéu, apertando-o contra o peito, num gesto de respeito mas que não conseguia ocultar sua ansiedade. Seu olhar se concentrou
na enorme porta onde a velha acabava de entrar, o corpanzil robusto e desajeitado ocupando quase todo o espaço de acesso.


    Mal entrou no quarto, a velha matrona já voltou empurrando com autoridade maternal um jovem de expressão angustiada.


    - Eu já num disse, sinhozinho? Fique aqui fora, hômi de Deus!


    Ele tentou abrir a boca num protesto desesperado, mas sabia que não ia adiantar, então respirou fundo e procurou se acalmar a contragosto. Naquele ponto, sua autoridade de patrão era totalmente submissa. Mas a velha conhecia muito bem o seu "minino" e sabia o tamanho da aflição que o torturava naquele momento.


    Acariciou ternamente seu rosto e disse, quase num sussurro:


    - Confie im Deus, meu fi.
    - Sim, mãe Amélia. Eu acredito em Deus e confio na senhora.


    Ela lhe sorriu e voltou apressadamente para o quarto, fechando a porta atrás de si.
Depois de algum tempo, a porta voltou a se abrir. Uma jovem saiu apressada com uma bacia nas mãos, para logo retornar depressa com a bacia quase cheia de água morna. De fora deu para ouvir lá dentro do quarto a velha dando-lhe uma bronca e chamando-a de "lerdeza" e "mandriã".


    Sem muito o que fazer, o homem se virou na direção da escadaria, e foi somente nesse momento que percebeu a presença do capataz na parte inferior a olhá-lo, enquanto apertava o chapéu contra o peito, numa aparente ansiedade que muito se assemelhava à do próprio patrão prestes a se tornar pai pela primeira vez.

    CONTINUA

    Por: Nyll Mergello