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Nona Parte
Cristo Redentor - o Símbolo da Opressão
Por quatro meses seguidos, somente o derramamento de sangue era percebido, já que diante de tanta indignação, ninguém sabia de fato por que lutavam, matavam e morriam. Eram as velhas mágoas vindo à tona. E de início, essas mágoas se concentraram nas autoridades e forças policiais. Nem os profissionais de serviços de segurança privada escapavam. Centenas de carros-fortes foram “confiscados” para servir aos interesses dos revolucionários. E serviam como verdadeiros tanques de guerra. Aviões militares e aviões civis eram usados na máquina de guerra a serviço dos insurgentes. E na medida em que mais pilotos mudavam de lado, trazendo seus caças e helicópteros para acrescentar à força do anterior inimigo, o poder de fogo dos separatistas só ia aumentando. Vários navios aportavam em Recife com enormes carregamentos de material bélico, vindos especialmente do Oriente Médio. Mas não sem reação da Marinha, que afundou pelo menos dois cargueiros sem bandeiras, abarrotados de armamentos destinados aos revoltosos nordestinos.
Num ataque surpresa, entretanto, vários aviões de caça a serviço dos revolucionários levou à pique um submarino do governo, que após ser fulminado por um ataque conjunto, submergiu e em seguida explodiu criando uma enorme bolha de água não muito distante do arquipélago de Fernando de Noronha, em Pernambuco. No Rio de Janeiro, a polícia militar reagiu com força total, mas os números falaram mais alto e a população, embora à muito custo, aniquilou a corrupta polícia em pouco tempo. Mas sofreu às mãos do BOPE, que por fim se entregou. E se não fosse pela intervenção imediata das lideranças revolucionárias no Rio de janeiro – interessadas em tê-los a serviço da causa –, os corajosos e bem treinados policiais de elite do BOPE teriam sido executados sumariamente.
Mas eles concordaram que precisava haver mudanças no país, e não se opuseram a lutar em prol da revolução. Todos os recursos da Polícia Militar e do BOPE, incluindo viaturas e os temidos Caveirões foram integrados aos recursos dos revolucionários, que após tomar posse da Capital e de todo seu capital, decidiu explodir “o maior símbolo do capitalismo selvagem carioca”: o Cristo Redentor! Horrorizado, o mundo assistiu ao vivo e em cores pela internet e depois pela televisão o Cristo Redentor voar pelos ares. O que aos olhos do mundo era pura insanidade, à compreensão dos revoltosos cariocas era “o fim da opressão de Deus” sobre a miséria carioca. Seus braços abertos não eram para abençoar as favelas, e sim os ricos das áreas privilegiadas.
“Sou carioca, mas nunca pude vir até o Cristo. E não lamento que a primeira vez tenha sido exatamente com a função de explodir este símbolo de opressão”, disse o jovem encarregado de preparar os explosivos. Perguntado pelo repórter se não estava se sentindo mal por aquilo, ele respondeu: “Mal eu me senti a vida inteira por ser excluído e humilhado por uma sociedade preconceituosa e hipócrita, que sempre viveu sob a proteção dos braços do Cristo Redentor. Não, eu não estou me sentindo culpado por isso, estou é me sentindo de alma lavada. Acabo de destruir o maior de todos os capitalistas. E não acredito que Cristo, lá no céu, esteja com raiva de mim. Acho que ele está é muito feliz.”
Décima Parte
Nordeste - O Massacre dos Samangos
Por todos os estados, a revolta contra a polícia era generalizada, como se a instituição fosse a grande culpada por toda a desgraça nacional. Não se via mais policiais uniformizados, porque o terror era total e o lema corrente era: “samango bom é samango morto!”. Quem era policial, guardava isso como segredo de estado.
Ninguém queria ser confundido com policial, ninguém queria ser amigo ou parente de policial, ninguém queria ser vizinho de policial, ninguém queria sequer ser conhecido de policial. Principalmente no Nordeste, era um risco muito grande ser considerado simpatizante ou “paga pau” de samango. Isso podia significar a diferença entre a vida e a morte. Uma coisa era incontestável: visto que toda ação, positiva ou negativa, gera uma reação também positiva ou negativa, era óbvio que nesse caso específico, a raiva adquirida durante muito tempo diante de abusos de poder e arbitrariedades cometidos pelas polícias em todos os cantos do Brasil, era a consequência negativa de desencadeamento de todo aquele ódio e indignação mortais.
Por tudo isso, ser policial naqueles tempos críticos era possuir passaporte para o inferno. Assim, um número enorme de policiais se sentiam muito mais seguros servindo aos interesses da revolução, sem no entanto jamais demonstrar que outrora haviam vestido a farda da polícia. Geralmente preferiam não dar trela pro azar, por isso destruíam qualquer documentação pessoal e deixavam que a barba crescesse até ficar bem profusa e com cara de Fidel.*
Na internet, centenas de vídeos degradantes mostravam policiais humilhando sadicamente adolescentes e crianças, em atitudes perversas, covardes e repreensíveis. Tais vídeos passaram a ser usados para fomentar ainda mais a perseguição feroz e justificar a crueldade contra “a corja covarde e corrupta”. De repente, a internet ficou repleta de vídeos que mostravam policiais sendo humilhados de todas as formas inimagináveis (até com cenas de estupros coletivos e castrações sumárias), implorando pela vida, choramingando a clamar por “misericórdia em nome de Nossa Senhora” e tantos outros santos que era até difícil decorar os nomes.
Na verdade eram tantos os santos invocados que muita gente sequer imaginava que os mesmos existissem. Era uma verdadeira salada mista de santos. “É o fim do baculejo truculento e das humilhações sádicas. É hora dos baculejadores sentirem um pouco do seu próprio veneno. De baculejadores a buculejados. De humilhadores a humilhados. [...] Olho por olho, dente por dente”.
Lá pras tantas, já tinha samango implorando até em nome de um certo líder revolucionário que ganhara status de santo – não se sabe se por terror ou por merecimento. Era um pernambucano que demonstrava tanto ódio por policiais que ninguém queria cair em suas mãos. Com ele os direitos humanos existiam apenas na diplomacia de suas belas e bem colocadas palavras. Na prática, desconfiava-se de que toneladas de fardados e paisanas eram incinerados sob suas ordens. Então não era de todo sem sentido implorar em nome desse “santo” homem que parecia possuir as chaves do céu e do inferno. Porém, na maioria das vezes o que ficava no ar eram somente os pedidos de clemência, porque os pobres coitados, quando não levavam uma rajada de balas, era porque seriam conduzidos ao inferno dos crematórios clandestinos que não paravam de lançar fumaça no “céu da Pátria”, ocultando “o sol da liberdade em raios fúlgidos”.
Do litoral ao sertão, do sertão ressequido às “margens plácidas” do São Francisco, as velhas terras de Maurício de Nassau eram testemunhas fiéis do “brado retumbante” que ecoava “de um povo heroico” cheio de revolta e decidido a pôr fim às injustiças históricas e à cruel desigualdade vigentes desde sempre. *
Cerca de seis meses antes do fim da guerra, as lideranças decidiriam que todos os ex-policiais que estivessem lutando pela causa separatista, estavam perdoados, devendo ser tratados não pelo que haviam sido outrora, mas pelo que haviam feito em nome dos ideais revolucionários.
Décima Primeira Parte
O Orgulho da ROTA Sob Fogo Cruzado
Quando finalmente o sistema político organizado da Região Nordeste começou a titubear diante da guerra civil e tudo estava dominado, as lideranças se reuniram na capital baiana, quase em escombros, e assinaram o Tratado de Salvador, que declarava consolidada a conquista em toda a região, embora os bombardeios continuassem afligindo as principais cidades.
Foi criado um governo central provisório, até que o resto do país também estivesse “em paz”. Ali na capital baiana, as lideranças vindas do Rio de Janeiro, do Espírito Santo, de Minas Gerais, de São Paulo e da Região Sul, assumiram o compromisso de continuar a luta até que tudo estivesse sob controle. Uma parte das tropas permaneceu na região para assegurar o controle das fronteiras e impedir o avanço dos federais.
Milhares de homens foram enviados para ajudar em Minas Gerais e de lá entrar em São Paulo, o estado mais forte e que embora fosse o foco da revolução, ainda conseguia manter certa medida de ordem e civilidade – apesar dos intensos entreveros que se desenrolavam entre os revolucionários locais e os federais.
São Paulo preocupava as demais lideranças, pois os resultados por lá, apesar de muito expressivos, ainda eram bastante incertos, ora favorecendo um lado, ora o outro. E era aí que certamente os demais aliados fariam a grande diferença, com seus enormes contingentes humanos, além de grande poder de fogo, graças aos muitos militares que haviam mudado de lado.
Uma coisa ali, no entanto, era mais que certa: os sangrentos confrontos entre a população e as forças policiais estavam muito bem decididos. Não existia mais corporação organizada. Não havia sobrado pedra sobre pedra. No último e decisivo confronto, um grande contingente de outrora seguros e arrogantes representantes da lei e da ordem, se refugiara no antigo complexo da polícia de elite mais temida de São Paulo*. A esperança era que aguentassem o ataque até a chegada de vários helicópteros militares designados para retirá-los do local e conduzi-los para a segurança de uma base da aeronáutica. Por outro lado, um grupo de elite do exército, composto de aproximadamente trezentos e cinquenta homens, tentava avançar rechaçando o bloqueio revolucionário que dominava a maior parte da cidade.
O objetivo era dar cobertura aos helicópteros de resgate e tentar reassumir o controle daquela área da capital. Porém antes mesmo de sobrevoar o espaço aéreo da região da Luz, os cinco helicópteros foram fulminados pela artilharia do inimigo. Dois foram abatidos. Os três restantes receberam ordens de abortar a missão imediatamente, deixando o grupo de elite da ROTA em sérios apuros.
Ao penetrar na Avenida Tiradentes, o comboio do exército foi detido e fulminado. Em pouco mais de uma hora de combate, as tropas do governo, em número pelo menos quatro vezes inferior ao adversário, se viram obrigadas a render-se. Somente metade dos soldados haviam sobrevivido, ao passo que do lado rebelde foram registradas pelo menos duzentas baixas, vinte e cinco a mais que os militares.
Dentro da sede da polícia de elite, os homens se recusavam a sair de mãos pro alto. Não estavam “dispostos a se humilhar diante de um bando de carniceiros”. Por fim o líder daquele grupo e responsável pelo setor, cansado de gastar salivas, determinou que a artilharia resolvesse a questão.
Foi uma chuva de balas tão intensa que mais parecia o fim do mundo. Até que as estruturas do complexo sucumbiram sob a impiedosa e mortal saraivada de projéteis, caindo sobre seus últimos defensores, que antes mesmo de receber a chuva de escombros, já haviam perecido ante o fogo inimigo.
*Sede da ROTA: Av. Tiradentes, 440, Luz, SP
Décima Segunda Parte
A República Federativa do Brasil ameaçada
Com a Lei Marcial e o fim das garantias individuais, o conflito deixou de ser encarado como um levante popular, pois as dimensões do desastre já eram grandes demais para ser ignoradas. A situação só ficou ainda mais complicada e confusa, pois se de início as forças armadas tinham por objetivo controlar a situação e restabelecer a ordem perdida, de repente estavam envolvidas – muito a contragosto – em confrontos diretos com os insurgentes civis (aos quais se uniam mais e mais militares).
Não era mais possível negar o fato de que o Brasil estava vivenciando uma terrível guerra civil. Era um verdadeiro desastre nacional, e não tinha como voltar atrás. O Governo tentou sentar à mesa de negociações, mas a URNON se recusou veementemente, acusando-o de estar manipulando a situação puramente em favor de seu mandato, sem nenhuma pretensão de assumir compromissos de mudanças.
Não havia nenhum interesse real, exceto a continuidade de sua gestão corrupta, afundada em escândalos e desvios descarados de dinheiro. Por outro lado, a URNON estava determinada a fazer ruir o sistema corrupto e salvar o Brasil dos sanguessugas que governavam para si próprios, e não para o povo brasileiro. internamente, as Forças Armadas estavam divididas por opiniões divergentes que oscilavam muito.
Era claro que o exército não estava nem um pouco satisfeito de ter que encarar uma dispendiosa guerra civil, cujo saldo de vítimas seria muito alto. “Nos preparamos para defender a Pátria contra algum eventual inimigo externo, e eis que de repente nos vemos forçados a aceitar a ideia de que nosso inimigo está entre nós mesmos. É muito triste e embaraçoso. Esta não é a função das Forças Armadas.” Palavras de um oficial de alta patente do exército, triste com a eclosão da guerra civil, e que desertou em favor dos revolucionários. Enquanto nos bastidores das Forças Armadas ocorriam divergências de opinião sobre quem estava certo ou quem estava errado, nas linhas de frente o exército estava confiante de que apesar do tamanho do conflito, as coisas logo seriam colocadas nos eixos, afinal dispunham de todo aparato bélico oficial necessário para abafar o antagonismo nacional. Entrementes, as forças federais se viram de repente lutando contra um inimigo que convergia de todos os lados, cada vez mais forte, decidido e mais bem equipado. Era como se todos houvessem subitamente perdido a razão, uma nação ébria e em ebulição, enlouquecida e não disposta a ouvir os clamores do bom senso. Para os revolucionários era tudo ou nada, num avanço implacável, movidos pelo desejo insaciável de libertar o Brasil da escravidão de um sistema corrupto e deplorável.
O primeiro foco de divisão das Forças Federais se deu no Nordeste, onde centenas de militares desertaram do exército e aderiram à revolução, passando a organizar o passo a passo do avanço contra o inimigo que se aproximava a partir de São Paulo e do Centro-Oeste cada vez mais com força total. Com o tempo, mais e mais militares simpatizantes dos revolucionários e descontentes com o sistema, engrossavam as fileiras dos insurgentes. Mas o apoio de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, e pouco depois os estados da Região Sul, que tentavam pôr ordem em suas próprias casas, foi essencial para os nordestinos rechaçarem as tropas federais que tentavam a todo custo se impor na região a partir da Bahia.
Porém foi na ponte que divide as cidades de Petrolina, em Pernambuco e Juazeiro, na Bahia, que os nordestinos e seus aliados sudestinos e sulistas mostraram a que vieram, desbaratando por completo o exército, e fazendo milhares de prisioneiros. Tendo assumido o controle total dos estados do Nordeste, os aliados por fim, às duras penas, entraram no território dos orgulhosos paulistas, penetrando pelas divisas de Rio de janeiro, Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso do Sul.
Cercados por todos os lados, ao mesmo tempo em que tentavam a todo custo consolidar a ordem interna, as forças paulistas não deixaram-se abater. Fortes, bem equipadas e com o reforço de tropas, além de equipamentos, vindos das regiões Centro-Oeste e Norte, impuseram pesadas baixas em todas as frentes de combate, tanto dos revolucionários paulistas como dos aliados que penetravam no estado por Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de janeiro, Paraná e Mato Grosso do Sul. Eram várias frentes para manter. Mas em menos de dois meses, a situação mudou contra os paulistas. Os números falaram mais alto, e assim as tropas aliadas logo adentravam as principais cidades do estado. Por fim voltaram sua atenção para a capital, que já estava quase praticamente dominada pelos revolucionários paulistas. Mas com o apoio dos milhares de rebeldes aliados vindos dos outros estados, não demorou para que a principal capital do Brasil por fim capitulasse.
No ínterim, verdadeiros massacres haviam sido perpetrados antes que as lideranças se sentassem à mesa de negociações para entrar num consenso – até então, os rebeldes paulistas achavam que não precisavam de nenhuma ajuda externa para consolidar sua revolução. Os resultados positivos e imediatos conseguidos após a união de forças mostraram o quanto eles estavam errados em seu orgulho. Os termos exigiam que todos os estados rebelados se unissem em torno de um objetivo comum, ou seja: consolidar a vitória sobre a União e dividir o país.
A proposta não era bem vista pelos paulistas, que a recusaram, pois tinham interesse em manter a integridade da República Federativa do Brasil. Mas não tinham como se impor sobre todos os demais, e assim o acordo foi firmado e assinado por todas as partes. O documento exigia a renúncia do Presidente e o fim das ações militares. O representante de Brasília levou uma cópia do documento para apreciação do Presidente da República.
A proposta foi rejeitada veementemente pelo Presidente, que via na “renúncia” uma ofensa à sua pessoa, e na separação do país “uma afronta à Constituição Federal”. As ações militares continuariam.