NOTA AO LEITOR: PARA SUA TOTAL COMODIDADE, ESTE TEXTO PODE SER LIDO NA ÍNTEGRA POR VOZ NEURAL SINTÉTICA, BASTA VOCÊ CLICAR NO BOTÃO LOCALIZADO AO FINAL DESTA PÁGINA!
4/18
A Armadilha
Depois de duas semanas acompanhando cada passo dela, ele já sabia praticamente tudo sobre sua escolhida. Seu nome era Lawrie Sophie Massay, 23 anos de idade, linda e promissora, de ascendência japonesa. Era como se a conhecesse desde sempre. Do gosto pela leitura ao prazer de passear diariamente com seu cão de companhia da raça Dobermann pelo parque, onde ficava sentada por cerca de uma hora apreciando a leitura de um bom livro. Do trabalho na Tech Nippo, sua empresa de tecnologia, ao happy-hour com os amigos. Das visitas periódicas à família no Bairro da Liberdade à crise no relacionamento com Augusto, o namorado traíra e sem escrúpulos, um playbobo de nariz empinado, um sem futuro fanfarrão e metido a dono do mundo, que escondia por trás de sua arrogância e prepotência, todo seu medo de enfrentar a vida e sair de baixo das asas do pai, um empresário de origem italiana, do ramo alimentício, que não desconhecia as falhas de caráter do herdeiro de seu império fundado à base de muito trabalho duro, no bairro do Brás.
Voltando à realidade, o jovem suspirou. Inevitavelmente ele sempre se apegava às suas “peças”. Era um ponto fraco que ele precisava superar a fim de atingir a perfeição como caçador de “voluntários” para a causa humanitária da organização.
No entanto, pra seu próprio azar, sempre sentira atração por mulheres orientais. Mas aquilo era muito mais que isso. Lawrie era extremamente bela, dona de uma extraordinária mistura racial nipo-brasileira. Alta, de pele muito alva, longos cabelos claros e um belo sorriso moldado por um lindo olhar castanho. Tudo isso complementado por uma elegância no andar que fazia com que todos a olhassem com admirassem e desejo. Era algo inevitável.
A coisa estava chegando a um ponto em que o “caçador” até já conjecturara a possibilidade de procurar outra possível “voluntária”, desistindo assim de Lawrie. Aquilo estava sendo um verdadeiro teste de fidelidade para com a organização. Oh! Indecisão cruel.
Mas se ele permitisse que sentimentalismos interferissem em suas decisões ou escolhas, isso seria uma prova fiel e cabal de que ele não estaria maduro, preparado suficientemente ou mesmo à altura do Pentáculo. Mas ele estava, embora ainda fosse bastante jovem.
“Sua escolha é sua decisão, sua decisão é sua escolha. Suas escolhas e suas decisões refletem seu potencial e mostram quem você realmente é.”
Ele olhou para o relógio dourado em seu pulso. Se Lawrie obedecesse a sua própria pontualidade impecável, dentro de apenas cinco minutos estaria chegando.
Os dois últimos anos haviam feito um bem danado para o jovem “caçador”. Tornara-se um exímio perseguidor, habilidoso e impessoal nas escolhas, frio na decisão e objetivo na ação. Com Lawrie não seria diferente. Não se permitiria um revés, titubeando justamente agora, quando já havia concluído e enviado o relatório sobre suas atividades no cumprimento do dever, o qual obviamente incluía os dados referentes à sua “voluntária” de ascendência oriental. Afinal, Lawrie estava perfeitamente de acordo com a “qualidade excelente” exigida pela organização para esta primeira demanda. Estava claro que eles não aceitariam “produtos” que não fossem de “altíssimo padrão e de qualidade irrepreensível, pois se ‘a primeira impressão é a que fica’, nós deixaremos a melhor das impressões.”
Ele nunca fizera uma escolha errada e nunca falhara. Dentre os muitos “caçadores” e “caçadoras” espalhados pelo país e mantidos pela organização, era um dos melhores. Ele sabia que o Conselho o tinha na mais alta consideração, não apenas pela dedicação e empenho, mas também pelo alto nível de inteligência que tinha, além de valor, apreço e agradecimento que demonstrava pela irmandade, cujo poder e influência o haviam ajudado a vencer todos os obstáculos que se interpunham entre ele e o cargo almejado dentro de sua empresa.
Porém, um fator se colocava entre ele e sua ambição de alcançar seu objetivo maior, o Pentáculo. Como o cargo era vitalício, ele teria que esperar até que um dos membros fosse convidado por Deus ou pelo Diabo para viajar pro Além. Mas isso teria que acontecer mais cedo ou mais tarde, pois a morte chega uma hora ou outra até mesmo para um conselheiro, afinal eles também são seres humanos.
Era nos momentos de lazer, aos fins de semana e nas férias que podia mostrar serviço em favor da organização. Sem estresse ou correria, tudo na maré mansa.
E pensar que até uma semana antes, nunca havia pensado em adotar um cachorro. E não é que estava gostando da experiência? Quem sabe até ficasse com o cão assim que a missão atual chegasse ao fim? Até que não seria uma má ideia. Adquirira um Dobermann lindo, muito parecido com o de Lawrie. E àquelas alturas, estava se afeiçoando ao animal. Talvez isso até fosse bom, pois agindo de maneira genuína, ficaria muito mais fácil convencer Lawrie sobre sua paixão por cães e animais em geral. Que maneira poderia ser mais apropriada e original para conquistar a confiança de uma jovem romântica e apaixonada por bichinhos de estimação? Lawrie era uma verdadeira defensora dos animais, e sua crise com o namorado metido a besta se dera exatamente porque o imbecil detestava seu cachorros e insistiu para que a moça se livrasse de Ralph, seu Dobermann. Ela não aceitou sua caprichosa imposição, e a relação estremeceu. O detalhe ignorado por Lawrie é que quando um cachorro não gosta de alguém, é porque ele está farejando algo errado nesse alguém. E naquele caso, o danado do cão devia estar farejando as traições do rapaz. Como reza o ditado, “melhor um cachorro amigo que um amigo cachorro.”
Desde então, Lawrie vinha demonstrando certa tristeza, mas era forte e tinha tudo para esquecer o babaca. Além do mais, não deixara de seguir sua vida normal, como passear com seu pet pelo parque ou ler seus livros no banco da praça.
Voltando de seus devaneios, ele sentiu que estava um pouco ansioso e respirou fundo. Precisava se concentrar só na missão. Lawrie seria a voluntária que completaria sua cota de duas unidades. É isso e pronto. Nada de sentimentalismos agora!
Ficou andando pelo parque, por entre as árvores, sempre de cabeça baixa, o boné a encobrir seu rosto. Queria evitar as câmeras que infestam os lugares públicos hoje em dia. Mas mantinha-se atento ao local predileto da jovem, que já devia estar quase chegando.
O sol estava agradável naquele belo sábado outonal. Ele observou uma senhora passando com seu carrinho de sorvete. Era uma mulher de aproximadamente uns cinquenta anos, simpática e forte, mas que a intervalos regulares fazia paradas curtas e segurava os quadris a fim de curvar o corpo para trás, como que sentindo algum desconforto, certamente causado por algum problema de coluna.
A velhice é certamente um grande mal, do qual ninguém pode escapar. Não que uma pessoa na faixa dos cinquenta esteja velha, pensou o jovem. Na verdade, a velhice é um tanto quanto relativa, nos dias de hoje. No entanto, apesar das dificuldades da vida, aquela senhora mantinha-se serena e sorridente, mostrando que neste ponto, felicidade também é algo absolutamente relativo. Uma pessoa pode ser rica e infeliz, ao passo que outra pode ser extremamente pobre e feliz. Mas, será que ela era assim mesmo ou aquela simpatia toda fazia parte de suas estratégias como vendedora? Por um momento ele imaginou aquela senhora como uma de suas “voluntárias”, mas sorriu diante do absurdo. “Voluntários” – ao menos naquela primeira fase – ,deveriam ser pessoas especiais e que precisavam necessariamente ter idade entre dezoito e trinta anos, solteiros e sem filhos ou dependentes, excelente situação financeira, de boa formação e sem quaisquer deformidades ou doenças. “Produtos perfeitos para um início perfeito e marcante.”
Aquela senhora, pelo jeito, nem que fosse jovem, atenderia aos requisitos, pois se não fosse reprovada por conta de algum eventual problema de saúde ou por outra razão qualquer, sua pobreza se tornava uma razão mais que suficiente para rejeição. Pobres não serviam para ser “voluntários” na grande experiência que estava prestes a acontecer.
De repente um latido canino chamou a atenção do caçador. Voltando o olhar na direção oposta, sorriu ao ver que Lawrie chegava com seu andar gracioso, precedida pelo seu Dobermann alvoroçado e ansioso da liberdade proporcionada pela vivacidade do parque e sua atmosfera vibrante.
Imediatamente ele seguiu na direção de Lawrie, sendo seguido imediatamente pelo cão, já habituado ao seu dono provisório. A poucos metros de Lawrie, fingindo não estar vendo-a, quase a atropelou. Parou abrupto pedindo desculpas. Mas ela simpática, disse que estava tudo bem. Ele insistiu, se desculpando e mostrando toda aquela preocupação. De repente, estavam conversando descontraidamente, enquanto os dois cachorros brincavam a correr pra lá e pra cá.
Tudo que ele aprendeu na internet sobre animais de estimação estava sendo muito útil naquela conversa com Lawrie. Não mostrava haver quase nada que ele não soubesse sobre gatos, cachorros e uma infinidade de outras espécies de bichanos. Lawrie estava encantada. Ele, educadamente, como bom cavalheiro, a convidou para tomar um caldo de cana e comer um pastel ali perto, na barraquinha que estava sempre lotada de gente. Ela aceitou admirada, pois a chique barraquinha era seu ponto obrigatório antes de ir embora. Lá, conversaram por mais de uma hora a fio. Por fim, pra completar a afinidade mútua, combinaram de se reencontrar no dia seguinte no mesmo horário, no mesmo lugar.
E assim, durante outros quatro dias voltaram a se encontrar. No quarto dia, sexta-feira, André (nome com o qual ele se apresentou) finalmente a convidou para um jantar em seu apartamento ali perto. Pra sua própria surpresa, ela aceitou o convite dele, sem qualquer cisma ou desconfiança.
Embora nas últimas semanas ela não estivesse se sentindo muito bem, não negava que estava ansiosa pelo jantar daquela noite. No horário combinado ela compareceu, sem seu cachorro, claro. Ela estava deslumbrante. Ele a elogiou, verdadeiramente encantado com sua beleza.
Ele havia preparado um jantar simples e delicioso, com uma carne tão suculenta que ela comeu como uma criança feliz e gulosa.
Estranhamente, Lawrie Sentia-se muito a vontade ao lado de André, em quem depositava uma estranha confiança.
Ao fim do jantar ficaram conversando na sala. André era muito divertido. E a paz do ambiente, complementada pelo violoncelo da música de fundo, constante e agradável, tornava o ambiente perfeito para um bom uísque. Não que Lawrie gostasse da bebida. Mas naquela ocasião ela estava se sentindo confortável o suficiente para aceitar o convite de André.
André propôs um brinde.
– Salve à vida!
E ambos sorveram o primeiro gole ao mesmo tempo. Os minutos se passavam rapidamente, e a conversa dos dois se tornava mais espontânea e alegre.
Finalmente Lawrie disse que precisava ir embora. Mas André propôs só mais uma dose, pra formalizar a amizade dos dois. Depois ele a levaria em casa, sem qualquer intenção maldosa. Lawrie aceitou, mas somente para não desapontá-lo. Gostava de manter a sobriedade, pois era a maneira mais correta de se manter o controle da situação.
E assim, André foi preparar as taças, uma quantidade muito pequena, puramente simbólica. Porém desta vez ele adicionou à bebida de Lawrie um líquido incolor extraído a partir um frasquinho retirado do bolso de sua calça.
Propôs mais um brinde.
– À amizade – brindou.
– À amizade.
Foi no segundo e último gole que aconteceu. Uma vertigem súbita e a taça simplesmente escapuliu à mão de Lawrie, como se ela estivesse perdendo o controle sobre seus membros.
– Oh! Perdoe-me... Não sei o que deu em mim, desculpou-se ela sem graça, levando a mão à têmpora ao mesmo tempo em que sentava no sofá para não cair.
– A culpa foi minha, não devia insistir para que você bebesse tanto.
Mas a voz de André foi sumindo gradualmente em meio a um zunzunzum que se intensificava, aumentando o desconforto de Lawrie. Ela massageava as têmporas, no intento de reprimir a tontura, mas ao carrossel que virara sua cabeça veio unir esforços uma náusea inesperada. E então uma sonolência, cada vez mais penetrante e invasiva.
De alguma forma, estava perdendo a faculdade de lógica e razão, como se repentinamente estivesse sofrendo uma lavagem cerebral que a desprovia rapidamente de seu eu, roubando sua identidade. Os brancos súbitos se intervalavam com crises de memórias antigas que se misturavam com novas memórias, num show monocromático. E então, como que milagrosamente, o incômodo foi se abrandando, e Lawrie se viu a flutuar incorpórea no vazio, como se num piscar de olhos houvesse sido teletransportada do chão firme para o vácuo negro do espaço sideral. Uma estranha sensação de leveza a envolveu enquanto ela se contorcia desequilibrada pela súbita ausência de chão. Então, do nada, surgiu um enorme luzeiro resplandecente que foi aumentando de tamanho e intensidade, até que ficou tão grande quanto o sol, bem a sua frente, rodopiando enlouquecidamente, lançando fagulhas quais meteoritos e cometas em todas as direções. Lawrie exclamou inebriada:
– Oh! É tão lindo! Estou presenciando o ato da Criação!
De repente, numa explosão surda a luz se fragmentou em um trilhão de fagulhas bem na sua frente. No momento seguinte, todas as fagulhas em expansão foram rapidamente sugadas pelo que antes consistia o centro da própria estrela. Só restou a escuridão, completa e cheia de uma estranha paz. Lawrie sorriu dominada por uma paralisia que deixava inerte e sem forças, ao mesmo tempo em que sua mente se desvanecia embriagada, impiedosamente sendo tragada pelo breu absoluto. Lawrie nunca se sentira tão lívida e liberta, como que invadida por uma paz divina e consoladora, uma espécie de cura para todas as mágoas e dissabores da vida.
André a ergueu nos braços e em seguida se dirigiu rumo ao quarto, deitando-a na cama. Depois ficou admirando sua beleza. Lawrie era realmente uma garota muito bonita e tentadora, dona de curvas perfeitas e uma pele maravilhosa. André sentou ao lado da moça dopada a dormir profundamente, a fim de tocar-lhe os lábios rubros. Passou o dedo, sentindo a umidade, em seguida levou o dedo à boca, saboreando aquilo qual um néctar. Não resistiu à tentação de tocar-lhe os seios pequenos e firmes. E quando sentiu que não resistiria à tentação de possuir a jovem desacordada, o celular tocou e vibrou forte, livrando-o do libertino desejo de fazer mal à jovem indefesa.
Atendeu imediatamente. Do outro lado, uma voz o saudou com um “salve, André 020!”. André respondeu com outro “salve!”. A voz então lhe perguntou sobre o andamento das coisas. André confirmou a conclusão de sua missão e disse que estava se retirando do apartamento.
– Pode mandar o pessoal.
– Ok, André 020. Parabéns, vá descansar, você merece.
Despediram-se com outro “salve!” e “André 020” se preparou para deixar o quarto. Mas antes de sair, voltou a olhar para Lawrie. Suspirou e mordeu os lábios, indeciso. De alguma forma, aquela vez estava sendo muito diferente das outras vezes. Não estava sendo fácil sair dali. Foi preciso travar uma verdadeira luta interior para sair do quarto e por fim abandonar o apartamento alugado e decorado especialmente para aquela missão. Existia um desejo ardente de mudar as coisas, mas existia também um medo superior a qualquer coragem. Não podia ir contra a organização, era como um mero mortal se atrever a se rebelar contra Deus. Além do mais, não podia estragar seu futuro por causa de uma simples atração física. De qualquer modo, pensou, Lawrie agora era propriedade da organização.
Além do mais, a obra da organização estava acima de qualquer coisa ou desejo pessoal por parte de todos que lhe juravam obediência incondicional.
5/18
Na Toca do Lobo
Gradualmente Lawrie foi abrindo os olhos. Ainda sentia a vertigem, e uma dor de cabeça que não chegava a incomodar muito.
Uma voz ecoou indistinta, como se estivesse vindo de muito distante. Tudo muito confuso para ser compreendido naquele momento.
– Você ta legal?
Aos poucos Lawrie foi se recobrando totalmente.
– André...
Balbuciou ela, ainda em completa confusão mental. Estava deitada numa cama, sendo observada por vários jovens com olhares atentos e curiosos.
– Quem são vocês?
Depois que Lawrie se recuperou totalmente, os jovens se apresentaram, mas todos estavam tão cheios de perguntas quanto ela. Aos poucos ela foi entendendo o que havia acontecido, pois todas as histórias daqueles jovens eram muito parecidas e coincidiam com a sua. Os rapazes haviam conhecido alguma bela garota, que após seduzi-los e convidá-los para um drinque em seu apartamento, os dopara com algum tipo de produto alucinógeno. As moças haviam sido seduzidas por algum rapaz encantador e irresistível, e da mesma forma, convidadas para beber alguma coisa em seu apartamento. E o resto, todos já sabiam. Um detalhe, no entanto não podia passar despercebido: todos aqueles jovens eram de lugares diferentes, cidades, estados etc. E as descrições que faziam de seus dopadores divergiam. Até parecia que havia um verdadeiro exército de jovens por aí dopando outros jovens e seqüestrando-os sabe-se lá com que finalidade.
– O que é isso? – perguntou Lawrie observando as paredes negras do cômodo espaçoso fechado por uma porta de aço com uma janelinha trancada, à altura dos olhos. – É uma cela de prisão?
– Eles chamam de... “Subdiretório”. No nosso caso, “Subdiretório A-4”.
– “Subdiretório”? Significa que apenas somos parte de algo maior?
– É o que parece – completou o rapaz loiro dando de ombros.
– Que loucura é essa?
– Supomos que se fazemos parte de um suposto “Subdiretório A-4” – prosseguiu uma moça sentando ao lado de Lawrie – , ou como eles falam, “SD-A4”, então existem outros três SD’s neste mesmo diretório. E possivelmente, com outros jovens tolos assim como nós, cheios de perguntas sem respostas.
– Oh, meu Deus...
– Tenha calma – a jovem abraçou Lawrie, tentando confortá-la. – Até agora ninguém foi maltratado. Na verdade somos relativamente bem tratados.
– Até demais pro meu gosto – completou outra moça. – Só gostaríamos de entender tudo isso, meu Deus. Afinal o que eles querem com a gente? Que fomos sequestrados é fato. De resto, não sabemos mais nada. Nem conseguimos ver ou sequer ouvir o que rola lá fora.
– Eu não consigo entender, lamentou Lawrie.
– Todos estamos no mesmo barco... Qual o seu nome mesmo?
– Ah! Perdoem-me – respondeu Lawrie enxugando as lágrimas. – , meu nome é Lawrie.
– Muito prazer, Lawrie, eu me chamo Juliano Nogueira.
O jovem era muito amável e tinha um forte sotaque nordestino. Foi ele quem fez as devidas apresentações.
Lawrie estava perplexa. Dos dez jovens que estavam naquele “subdiretório”, incluindo ela, todos eram de famílias ricas. Nenhum era casado, comprometido de alguma forma, menor de dezoito ou maior de 35 anos. E o mais inquietante: todas as meninas tinham sido abordadas e seduzidas por um belo jovem de nome “André”, assim como ela. Já os rapazes, todos haviam sido vítimas de uma garota muito bonita de nome “Valquíria” ou coisa parecida. No entanto, apesar dos nomes em comum, as descrições que cada um fazia de seu enganador, diferenciavam consideravelmente, embora todos fossem muito bonitos. Havia um padrão nas abordagens e procedimentos, fator indicativo e determinante de que todos pertenciam à mesma escola do crime. E eles, definitivamente, eram realmente muito bons no que faziam. Cabia apenas às vítimas a atitude de ceder ou não aos seus encantos.
Como diz o ditado, “quando a esmola é demais o santo desconfia.”
Todos aqueles jovens eram de nível universitário, e nenhum viera de família pobre. O mais velho, Glauber Noronha, tinha 30 anos e era um jovem publicitário de Recife.
Juliano Nogueira Magalhães, 24 anos, era um jovem delicado e idealista, pertencente a uma poderosa família nordestina. Estudante de engenharia na Universidade Federal de Pernambuco, tinha muito interesse em causas sociais.
O segundo mais velho era o Jean Pierre, um canadense de 28 anos que chegara ao Brasil para passar férias em Salvador, e acabou caindo na lábia de uma garota excepcionalmente bonita.
Tinha também a jovem médica Diana, de 26 anos.
Maria Ana, de 29 anos, era professora universitária em Vitória.
Dolores Andrade, de 21 anos, a mais jovem do grupo, era estudante de Direito numa faculdade de Campinas.
Carlos de Deus, 22 anos, era surfista e estava de viagem pronta para o Havaí quando foi dopado por uma “morena arrebatadora” que o convidou para beber algo com ela em seu apartamento, num bairro nobre de Fortaleza.
Henrique Freire, 25 anos, estava se preparando para inaugurar sua loja de materiais esportivos no Bairro da Penha, em São Paulo, quando foi seduzido por uma loira lindíssima que o enganou sem precisar desprender muito esforço.
Patrícia Albuquerque tinha a mesma idade de Lawrie, 23 anos, terminara a faculdade de Direito e era estagiária no escritório de advocacia de seu pai, no bairro do Jabaquara, na capital Paulista.
– Tudo isso é muito confuso.
Lawrie levantou-se da cama e começou a analisar o ambiente. Era um cômodo não muito amplo, mas a organização e limpeza o deixavam com aparência de mais espaço do que de fato possuía. Com cinco beliches, três de um lado e dois do outro, até parecia um quartinho de um orfanato que ela visitara alguns anos antes. Uma das camas, na parte inferior do primeiro beliche à esquerda, estava muito arrumada, claramente sem usuário, o que indicava que evidentemente pertencia a ela. Pra completar, dois travesseiros muito brancos, dois lençóis dobrados, um sobre o outro, e uma toalha de banho, também impecavelmente dobrada.
Um suave cheiro de produto de limpeza pairava no ar. Num dos cantos, uma estante cheia de livros. Numa das paredes, uns dois metros acima do piso, um monitor de televisão. Abaixo do monitor, uma geladeira pequena, enfeitada com um jarro de flores e alguns pinguins de gesso. Ao lado da geladeira, uma porta dava acesso a um banheiro.
Lentamente e sob os olhares dos demais jovens, Lawrie se dirigiu ao banheiro. Entrou e ficou observando incrédula. Havia um boxe. O espelho chamou sua atenção. Ela puxou a alça, abrindo o compartimento sob o espelho, e notou uma variedade de produtos de higiene pessoal, entre xampus, sabonetes, hidratantes etc. uma caixinha com uma escova de dente intocada não deixava dúvidas de que pertencia a ela.
De repente um enjoo a fez curvar-se com a mão à boca. Correu para o vaso sanitário ciente de que iria vomitar. Mas a ação não se completou. Ergueu-se devagar e voltou a fazer uma análise do ambiente.
Tudo parecia ter sido meticulosamente calculado, preparado para receber cada um deles.
Lawrie se olhou no espelho. Estava com uma aparência abatida e exausta. Por quanto tempo dormira? O que aconteceu enquanto ela esteve dopada? Como pôde se deixar enganar por alguém que ela mal conhecia? Qual o objetivo de tudo aquilo?
Se Lawrie pudesse ver além do espelho, certamente ficaria muito mais grilada com a infinidade de monitores constantemente vigiados por vários pares de olhares frios e muito atentos. Olhares que pareciam perscrutar o interior de sua alma, enquanto ela tocava a face, desconcertada com as olheiras que pareciam denunciar noites sem dormir.
Uma mulher se aproximou de um dos monitores e fixou demoradamente o olhar de Lawrie, como se adentrasse sua alma. Pareciam estar frente a frente, se olhando cara a cara.
– Tem algo estranho com a unidade 10, do lote 06, SD-A4 – a mulher continuou a observar o comportamento de Lawrie. – Ela ainda não comeu nada?
– Não, senhora. Ela acordou apenas meia hora atrás.
– Certo. Ela ficou desacordada por dezesseis horas seguidas. Mande que sirvam imediatamente algo para ela comer. E fiquem de olho nela. Qualquer reação estranha à comida, me avisem.
– Sim, senhora. – O jovem pegou imediatamente um dos três telefones na mesa e discou rapidamente alguns números. – Salve! – sua saudação foi correspondida do outro lado da linha. – Enviem imediatamente o desjejum para a unidade 10, no lote 06, SD-A4.
Lawrie sentiu um arrepio, uma estranha sensação de estar sendo observada. Imediatamente afastou-se do espelho e saiu do banheiro.
A mulher se virou com firmeza militar e dirigiu-se rumo à saída, mas parou por um momento, mãos às costas. Após alguns segundos de reflexão, se virou e ordenou:
– Assim que a U-10 fizer seu desjejum, mande prepará-la para passar na enfermaria.
Naquela tarde, Lawrie foi levada até uma enfermaria, onde foi analisada por um médico. Respondeu a várias perguntas, e como previamente orientada, manteve-se calada, restringindo-se apenas a responder. Uma mulher com cara de poucos amigos acompanhou tudo, atenta. Após examinar Lawrie o médico puxou a cortina e se dirigiu à mulher. Chegando bem perto, sorriu com evidente ironia.
– Parabéns! – sussurrou ele sério. – Vamos ter um bebê na organização.
– O quê? – Espantou-se ela. – Como assim? Ela está grávida? Você tem certeza disso?
A mulher parecia chocada, horrorizada.
– Claro! Certeza absoluta. Tempo aproximado de gestação, pelo menos umas oito semanas.
A mulher saiu da sala, visivelmente transtornada e indignada. No mesmo instante, os dois homens que haviam trazido Lawrie, entraram na sala. Lawrie os olhou confusa, em seguida virou-se para o médico, pronta para perguntar algo, mas ele a interrompeu com um sorriso.
– Tudo vai acabar bem, não se preocupe.
Lawrie se levantou e ficou de pé, pronta para ser levada de volta para o quarto. Os dois homens abriram passagem para ela, acompanhando-a em seguida.
6/18
A Hora da Verdade
Augusto Montanaro saiu irritado do escritório do pai, o empresário do ramo alimentício Fabrizzio Montanaro, um filho de italianos que não gostava de coisas erradas. Indignado com as críticas do pai, que o chamou de playboy irresponsável, Augusto acelerou o carro em direção à Avenida Celso Garcia, de onde seguiria rumo ao Largo da Concórdia e por fim o centro da cidade, até o Bairro da Liberdade.
Com a Avenida Rangel Pestana à sua frente, ficou na dúvida. Seguir para a direita, rumo ao centro da cidade, ou para a esquerda? Furioso, bateu três vezes a testa no volante do carro. Deu uns socos fortes na porta e alguma buzinadas para desestressar, e mal o semáforo abriu, ele acelerou pro outro lado da pista e disparou na direção contrária, rumo à Avenida Celso Garcia, ansioso de chegar ao bairro da Penha. Lá encontraria consolo e forças nos braços de Suzanna, sua segunda namorada que obviamente desconhecia a existência da primeira namorada, Lawrie. Àquelas alturas, Suzanna já devia estar em casa.
Suzanna também era uma moça independente. Filha de um fazendeiro da região de Barretos, não gostava de ficar dependendo do dinheiro da família. Trabalhava numa empresa de consultoria, jornada de meio período, e fazia faculdade de psicologia. Embora não fosse uma pessoa ambiciosa, queria vencer por seus esforços e méritos.
No fundo Augusto sabia que o pai tinha razão. Ele já estava “enrolando” Lawrie há pelo menos seis anos, desde os tempos da faculdade. Sem contar que nesse meio tempo já saíra com pelo menos uma centena de outras meninas. E aquilo realmente não parecia muito certo. Lawrie era uma boa garota, independente, de boa índole e de boa família. O tipo de garota feita para o casamento. Certamente merecia alguém à sua altura e competência. Augusto, definitivamente, estava longe de ser esse alguém.
Pensou no jeito dócil de Lawrie e lamentou ser tão canalha. Mas ainda eram tão jovens para se envolver mais seriamente. Bastava pensar em casamento ou num envolvimento mais profundo, para começar a sentir dúvidas sobre seus sentimentos para com a linda jovem de ascendência nipônica.
De novo deu um soco no volante. Droga, se não amava a garota, então por que era tão difícil dar um basta àquela relação cheia de conflitos? Já não se viam há pelo menos três semanas. Mas não haviam terminado oficialmente. Claro que ela não se livraria de seu cachorro idiota, o que se tornava um bom pretexto pra Augusto dar uma “chega” no namoro.
No ínterim, Augusto sabia que quando a procurasse tudo ficaria bem. Lawrie era de espírito pacífico e bondoso, sempre dando um jeito de contornar as situações mais difíceis. Era de uma paciência invejável, digna de suas raízes orientais. Sempre contornava as mancadas recorrentes de Augusto, e certamente desconfiava que ele saía com outras garotas. Mas não era o tipo de menina que apelava pra baixarias. Era muito fina pra isso. No entanto, tinha atitude demais pra aceitar traição. Se soubesse
das traições de Augusto, ela terminaria o namoro sem pestanejar.
Baseando-se nisso, bem em seu íntimo, algo dizia que desta vez quando ele a procurasse, as coisas seriam diferentes. Lawrie era madura, ao contrário dele, “um eterno moleque”, como dissera seu pai aos berros poucos minutos antes.
Augusto sabia que precisava conversar com a garota. Mas tinha que esfriar as ideias antes de procurá-la na Tech Nippo, que estava indo muito bem, graças à vocação e esforços de sua jovem dona.
Quisera ele ter ao menos um por cento da força e garra de Lawrie. Mas, coitado, não passava de um boa vida, um irresponsável acostumado a gastar dinheiro nas noites paulistanas, e que em certos momentos até já sentira as facilidades de ter um talento nato para gigolô.
Respirou fundo e decidiu que era hora de conversar sério com Lawrie e acabar com tudo. Era melhor assim, dessa forma ela poderia enfim dar um rumo à sua vida e encontrar alguém digno dela. Não era justo continuar enrolando alguém tão especial.
Ele nem entendia por que ela ainda não havia dado-lhe um chutaço na bunda. Seria por causa da antiga relação amigável que existia entre seus pais? É. Devia ser por isso. Lawrie era uma moça excepcional e muito sensível. Na certa não queria deixar os pais de Augusto tristes, já que eles apostavam muito na relação dela com seu herdeiro.
Mas hoje isso teria um final definitivo. Não continuaria sendo o vilão de uma relação onde uma pessoa era um símbolo de perfeição e a outra uma ovelha negra irremediável. Na melhor das definições, um típico canalha.
– Pior que é exatamente isso que eu sou, balbuciou ele.