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Luar de Deutschland
Primeira Parte
Dora
Era uma menina triste e quieta, sempre cabisbaixa pelos cantos e ausente em pensamentos distantes. Gostava de ficar separada das demais crianças, meio que contemplando o céu, mas era como se enxergasse apenas o vazio. Desconfiada, parecia estar sempre na defensiva, como se tudo representasse uma ameaça à sua segurança. Não confiava em ninguém e de todos parecia desconfiar veementemente. E por mais que seus colegas tentassem uma aproximação, nada dava certo. Obstinada, recolhia-se em sua solidão.
Ficava por horas a fio admirando os pássaros. Os olhinhos, donos de um profundo azul esverdeado, pareciam duas ametistas perscrutando tudo a seu alcance. Mas seu mundo colorido, de súbito tornava-se preto e branco tão logo chegava o momento de ir embora.
A partir daí, toda a paisagem se transformava num mundo sem cor e sem vida, enquanto o carro deslizava pela estrada sob indescritível tensão e parecendo correr muito mais do que de fato estava. E embora fosse inevitável, ela desejava em seu íntimo que ele nunca chegasse ao seu destino. Tudo estaria bem se eles apenas prosseguissem numa jornada sem fim, sob o vácuo de sua imaginação estrelada. Não queria parar, pois não queria pensar. Só queria continuar em movimento infinitamente, sem trégua e sem descanso. Ficar parada não era bom, porque afluíam-lhe pensamentos distantes que de tão próximos eram perturbadores e apavorantes.
Mas subitamente, sentia o carro elevar-se abrupto quebrando seus devaneios e então sabia que estavam subindo o acesso à garagem.
A noite, tentava não dormir, pois era a única maneira de evitar as nuvens negras e as cinzas a cair sobre sua cabeça ou o monstro negro que de vez em quando a visitava em seu quarto e sussurrava coisas arfantes em seu ouvido. E havia uma dor, fria e penetrante que a paralisava, embora muito mais suportável agora que antes. Suportável mas não aceitável, pois era algo mau e abominável que ela não conseguia explicar para si mesma e que por alguma razão a enojava. E de repente, fugiam-lhe os detalhes à mente, como se as lembranças fossem algo proibido, promíscuo e sujo que deviam permanecer ocultos no lugar mais recôndito de sua memória.
Naquela noite, seu pai veio ao seu quarto, como de costume, e arrumou o travesseiro sob sua cabeça, sentou ao seu lado e ficou por algum tempo a observá-la na penumbra. E pela tênue iluminação do abajur ela conseguiu ver um fio de lágrima a escorrer de seus olhos. Ela sentou na cama e passou delicadamente o dedo, enxugando o rosto do pai, em seguida o abraçou ternamente. Quando ele fez menção de levantar-se, ela insistiu que ele ficasse um pouquinho mais, pelo menos até ela conseguir pegar no sono. E ele ficou. Não demorou muito, ambos estavam dormindo. E havia no ar uma paz serena que de certo modo amenizava a melancolia que reinava naquela casa de atmosfera lúgubre e eternamente lutuosa.
Lá fora, uma ventania dava indícios da aproximação de um temporal. E não demorou muito para que os relâmpagos ofuscantes riscassem os céus com desenhos atemorizantes. As nuvens negras logo cobririam a terra. E de repente granizo, muito granizo. Um barulho ensurdecedor. Janelas começaram a se estilhaçar, pois a ventania vinda do Leste alterava a direção vertical das pedras de gelo lançando-as pelos flancos.
Dora sentiu uma mão tocando seu corpo. Era algo grosseiro e calejado que aos poucos ia tentando tomar posse numa sucessão de solavancos autoritários. Dora tentava se desvencilhar, mas a pessoa que a dominava era muito mais forte. De repente, gemeu de terror ao sentir uma mão adentrando suas pernas. Fez força sobre-humana para mantê-las fechadas, mas não conseguiu. Então ela viu a sombra negra, os olhos brilhando e a boca fétida num lascivo sorriso de satisfação descendo em direção à sua, enquanto mantinha a outra mão a apalpar seus seios em desenvolvimento. Virou o rosto, mas sentiu quando a pele excessivamente quente e áspera começou a roçar sua face rubra e delicada, a respiração rouca e engasgada se sobrepondo sobre seus gemidos, a saliva pegajosa a adentrar sua boca. E por mais que ela lutasse tentando um escape, era inútil resistir àquela monstruosidade que a espremia contra o colchão numa luta para consumir sua alma. Gradualmente foi se entregando numa mortificada sensação de mórbido torpor, certa de que logo aquela dor iria passar. Como sempre acontecia. Era só relaxar e acordar, pois aquilo não passava de um sonho ruim. Nada mais que isso.
Porém aquilo, mais que um sonho ruim e constante, era uma realidade constante e muito ruim. E mesmo 70 anos depois, continuaria a ser uma realidade dolorosa para Dora.
Lentamente, Dora se levantou da cama e foi até a janela, com as lentas passadas de seus 80 anos de vida. Por um momento relutou em abri-la. Respirou profundamente e abriu. O sol adentrou seu quarto, iluminando o ambiente nostálgico e ligeiramente melancólico. Dora sorriu para seu jardim bem cuidado e repleto de plantas. Borboletas multicoloridas sobrevoavam, afinal era primavera no Brasil. Que país incrível, pensou Dora, a boca iluminada por um sorriso a se sobrepor sobre sua tristeza.
Infância Perdida
A marcha era difícil. Mas a neve tornava tudo muito mais tortuoso. E embora soubessem que cada passo dado os aproximava ainda mais daquilo que era iminente segundo as circunstâncias daqueles tempos difíceis, parar significava abreviar ainda mais o tempo que já era curto. Cada minuto restante era saboreado em suas minúcias. Por um segundo, tudo parecia mais belo. E no segundo seguinte, muito mais aterrador. Volta e meia Dora ouvia o estampido de um disparo a ecoar pela floresta. Olhando para trás, ela podia vislumbrar um corpo estendido no solo gelado.
Continua...
Por: Nyll Mergello